Mitologia
O Poder do Mito
por
Joseph Campbell
Seleção, resumo e adaptação de Carlos
Guimarães
Por que mitos? Por que nos importarmos com
eles? O que eles têm a ver com nossas vidas?
Um de nossos problemas, hoje em dia, é que
não estamos familiarizados com a literatura do espírito.
Estamos interessados nas notícias do dia e nos problemas práticos
do momento. Antigamente, o campus de uma universidade era uma
espécie de área hermeticamente fechada, onde as notícias do
dia não se chocavam com a atenção que você era estimulado a
ter em se dedicar à vida interior, no aprender, e onde não se
misturava com a magnífica herança humana que recebemos de Platão, o Buda,
Goethe e outros, que falam de valores eternos e que dão o real
sentido à vida.
As literaturas grega e latina e a Bíblia
costumavam fazer parte da educação de toda gente. Tendo sido
surprimidas, em prol de uma educação concorde com uma sociedade
industrial, onde o máximo que se exige é a disciplina para um
mercado de trabalho mecanicista, toda uma tradição de
informação mitológica do ocidente se perdeu. Muitas histórias
se conservavam na mente das pessoas, dando uma certa perspectiva
naquilo que aconteciam em suas vidas. Com a perda disso, por
causa dos valores pragmáticos de nossa sociedade industrial,
perdemos efetivamente algo, porque não posuímos nada para por
no lugar. Essas informações, proveninetes de tempos antigos,
têm a ver com os temas que sempre deram sustentação à vida
humana, construíram civilizações e formaram religiões
através dos séculos, e têm a ver com os profundos problemas
interiores, com os profundos mistérios, com os profundos
limiares de nossa travessia pela vida, e se você não souber o
que dizem os sinais deixados por outros ao longo do caminho,
terá de produzi-los por conta própria.
Quer dizer que
contamos histórias para tentar entrar em contato com o mundo,
para nos adaptarmos à realidade?
Sim. Por exemplo, grandes romances podem ser
excepcionalmente instrutivos, porque a única maneira de você
descrever verdadeiramente o ser humano é através de suas
imperfeições. O ser humano perfeito é desinteressante. As
imperfeições da vida, por serem nossas, é que são
apreciáveis. E, quando lança o dardo de sua palavra verdadeira,
o escritor fere. Mas o faz com amor. É o que Thomas Mann chamava
"ironia erótica", o amor por aquilo que você está
matando com a sua palavra cruel. Aquilo que é humano é que é
adorável. É por essa razão que algumas pessoas têm
dificuldade de amar a Deus; nele não há imperfeição alguma.
Você pode sentir reverência, respeito e temor, mas isso não é
amor. É o Cristo na cruz, pedindo ao
Pai que afaste seu cálice de sofrimento, e que chora por Lázaro
morto, que desperta nosso amor.
Aquilo que os seres humanos têm em comum se
revela nos mitos. Eles são histórias de nossa vida, de nossa
busca da verdade, da busca do sentido de estarmos vivos. Mitos
são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana,
daquilo que somos capazes de conhecer e experimentar
interiormente. O mito é o relato da experiência de vida.
A mente racional, analítica, o lado esquerdo
do cérebro se ocupa do sentido, da razão das coisas. Qual é o
sentido de uma flor? Dizem que um dia perguntaram isso ao Buda, e ele simplesmente colheu uma flor e a
deu ao seu interlocutor. Apenas um homem compreendera o que Buda
queria demonstrar. Racionalmente, não fazia sentido esse gesto.
Ora, mas podemos fazer a mesma pergunta para algo maior: qual é
o sentido do universo? Ou qual o sentido de uma pulga? A única
resposta realmente válida está exatamente alí, no existir.
Qualquer formulação racional nos dá uma idéia linear da
coisa, mas mata a beleza da coisa em si. Estamos tão
empenhados em realizar determinados feitos, com o propósito de
atingir objetivos de um outro valor, linear e longe da vibração
da vida, que nos esquecemos de que o valor genuíno, o prodígio
de estar vivo, é o que de fato conta. É por isso que as grandes
questões filosóficas, embora sejam de fundamental importância
para todos, acabam sendo a preocupação de apenas uma ínfima
minoria da população. Eles esqueceram de que o valor genuíno,
o prodígio de estar vivo, é o que de fato conta, e preferem se
acomodar aos papeis de uma vida burguesa e adaptada ao sistema
capitalista, deixando que outros, atualmente os políticos
e os cientístas, tomem as decisões mais complexas por eles. Mas
todos já foram crianças curiosas, não foram? A curiosidade
infantil é a mesma curiosidade do filósofo. Cristo está certo
quando fala que só "quem se faz como um destes pequeninos,
entrará no Reino dos céus". Bom, e como podemos resgatar
um pouco de nosso grande potencial humano? Lendo mitos. Eles
ensinam que você pode se voltar para dentro. Busque-os e você
começa a entender as suas mensagens. Leia mitos de outros povos,
pois lendo mitos alheios você começara a perceber que alguns
enredos são universais. Por exemplo, a lenda do Graal. A
busca dos caveliros do Rei Arthur pelo Graal representa o caminho
espiritual que devemos fazer e que se estende entre pares de
opostos, entre o perigo e a bem-aventurança, entre o bem e o
mal, pois não há nada de importante na vida que não exija
sacrifícios e algum perigo.
O tema da história do Graal diz que a terra
está devastada, e só quando o Graal for reencontrado poderá
haver a cura da terra. E o que caracteriza a terra devastada? É
a terra em que todos vivem uma vida inautêntica, fazendo o que
os outros fazem, fazendo o que são mandados fazer, desprovidos
de coragem para uma vida própria. Esquecem-se que são seres
únicos, cada indivídiuo sendo uma pessoa diferente das demais.
A beleza de uma terra rica está exatamente na convivência dos
diferentes, não na mistura deles. Se temos um lugar ou uma era
em que todos se alienam e fazem a mesma coisa, temos a terra
devastada: "Em toda a minha vida nunca fiz o que queria,
sempre fiz o que me mandaram fazer".
O Graal se torna aquilo que é logrado e
conscientizado por pessoas que viveram suas próprias vidas. O
Graal representa (simboliza) o receptáculo das realizações das
mais altas potencialidades da consciência humana.
O rei que incialmente cuidava do Graal, por
exemplo, era um jovem adorável, mas que, por ainda ser muito
jovem e cheio de anseios de vida, acabou por tomar atitudes que
não se coadunavam com a posição de rei do Graal. Ele partiu do
castelo com o grito de guerra "Amor!", o que é
próprio da juventude, mas que não se coaduna com a condição
de ser rei do Graal. Ele parte do castelo e, quando cavalgava, um
muçulmano, um não cristão, surgiu da floresta (a floresta
representando o nível desconhecido do nosso psiquismo). Ambos
erguem as lanças e se atiram um contra o outro. A lança do rei
Graal mata o pagão, mas a lança do pagão castra o rei Graal.
O que isto quer dizer é que a separação que
os padres da igreja fizeram entre matéria e espírito (já que Jesus sempre se referia ao Reino
como um campo em que um semeador saiu a semear, ou uma rede
atirada ao mar, ou a uma festa de núpcias, ou sobre as aves do
céu e os lírios do campo, está claro que esta divisão
pré-cartesiana foi fruto da mentalidade patriarcal dos pais da
igreja, não do Cristo), entre dinamismo da vida e o reino do
espírito, entre a graça natural e a graça sobrenatural, na
verdade castrou a natureza. E a mente européia, a vida
européia, tem sido emasculada por essa separação. A verdadeira
espiritualidade, que resultaria da união entre matéria e
espírito, tal como era praticada pelos Druidas,
foi morta. O que representava, então, o pagão? Era alguém dos
subúrbios do Éden. Era um homem que veio da floresta, ou seja,
da natureza mais densa, e na ponta de sua lança estava escrita a
palavra "Graal". Isso quer dizer que a natureza aspira
ao Graal. A vida espiritual é o buquê, o perfume, o
florescimento e a plenitude da vida humana, e não uma virtude
sobrenatural imposta a ela. Desse modo, os impulsos da natureza
são sagrados e dão autenticidade à vida. Esse é o sentido do
Graal: Natureza e espírito anseiam por se encontrar uma ou
outro, numa atitude holística.
E o Graal, procurado nestas lendas românticas, é a reunião do
que tinha sido divido, o seu encontro simboliza a paz que advém
da união.
O Graal que é encontrado se tornou o símbolo
de uma vida autêntica, vivida de acordo com sua própria
volição, de acordo com o seu próprio sistema de impulsos, vida
que se move entre os pares de opostos, o bem e o mal, a luz e as
trevas. Uma das versões da lenda do Graal começa citando um
breve poema: "Todo ato traz bons e maus resultados".
Todo ato na vida desencadeia pares de opostos em seus resultados.
O melhor que temos há fazer é pender em direção da luz, na
direção da harmonia entre estes pares, e que resulta da
compaixão pelo sofrimento, que resulta de compreender o outro.
É disso que trata o Graal. É isso o que Buda quis dizer por
tomar o caminho do meio. É isso o que significa estar
cruxificado entre o bom e o mal ladrão e ainda orar ao Pai...
Histórias ou contos de fadas são histórias
com motivos mitológicos desenhadas especialmente para as
crianças. Elas frequentemente falam de uma menininha no limiar
da passagem da infância para a descoberta da sexualidade. É por
isso que chapeuzinho vermelho veste uma capa vermelha. Algo nela
exige, sem que ela queira, que ela faça o percurso pelo meio da
floresta (nosso lar de origem, onde se esconde nossos instintos),
até chegar à casa da vovó (a cultura tradicional que devemos
respeitar). Chapeuzinho está em fase de transição. A capa
vermelha lembra o sangue da menstruação. A jovem é algo muito
atraente para o Lobo. Ainda hoje dizemos que um homem apaixonado
e desejoso por uma mulher é um lobo. E ela não pode evitar de
conversar com o Lobo no meio da caminho. O Lobo a atrai também.
Na história original, chapeuzinho se transforma numa loba, ela
sabe que a velha cultura repressora deve ser morta para que ela
possa sentir o que deseja. Ela entende o sofrimento do lobo.
Uma outra históra semelhante é a da Bela Adormecida. Ao
completar dezesseis anos, a princesa parece hesitar diante da
crise da passagem da infância à idade adulta e se sente
atraída a furar o dedo na roca que a fará adormecer. Enquanto
dorme, o príncipe ultrapassa todas as barreiras que ela, sem
querer, levantou contra a sua maturação e vem oferecer a ela
uma boa razão para aceitar crescer. O beijo mostra que crescer,
ao final de contas, tem seu lado agradável. Todas aquelas
histórias coletadas pelos irmãoes Grimm representam a menininha
paralisada. Todas aquelas matanças de dragões e travessias de
limiares têm a ver com a ultrapassagem da paralização, com a
superação dos demônios internos.
Os rituais das "primitivas"
cerimônias de iniciação têm sempre uma base mitológica e se
relacionam ou à eliminação do ego infantil quando vem à tona
o adulto, ou visa à por a prova o iniciado aos próprios medos e
demônios internos. No primeiro caso, a coisa é mais dura para o
menino, já que para a menina a passagem se dá naturalmente. Ela
se torna mulher quer queira ou não, mas o menino, primeiro, tem
de se separar da própria mãe, encontrar energia em si mesmo, e
depois seguir em frente. É disso que trata o mito do
"Jovem, vá em busca de seu pai". Na Odisséia,
Telêmaco vive com a mãe. Quando completa vinte anos, Atena vem
a ele e diz: "Vá em busca de seu pai". Este é o tema
em todas as histórias. Às vezes é um pai místico, mas às
vezes, como na Odisséia, é o pai físico.
O tema fundamental nos mitos é e sempre será
a da busca espiritual. Vemos que nas vidas dos grandes Mestres
espirituais da Humanidade sempre nascem lendas e mitos ligados a
eles, figuras históricas reais. A história real de Jesus, por exemplo, parece representar uma
proeza heróica universal. Primeiro, ele atinge o limite da
consciência do seu tempo, quando vai à João Batista para ser
batizado. Depois, ultrapassa o limiar e se isola no deserto, por
quarenta dias. Na tradição judáica, o número 40 é
mitologicamente significativo. Os filhos de Israel passaram
quarenta anos no cativeiro, Jesus passou quarenta dias no
deserto. No deserto, Jesus sofreu três
tentações. Primeiro, a tentação econômica, quando o Diabo
diz: "Você parece faminto, meu jovem! Por que não
transformar estas pedras em pão?" Depois vem a tentação
política. Jesus é levado ao topo da
montanha, de onde avista as nações do mundo, e o Diabo diz:
"Tudo isto te darei, se me adorares", que vem a ser uma
lição, ainda não compreendida hoje, sobre o quanto custa ser
um político bem-sucedido. Jesus recusa. Finalmente o Diabo diz:
"Pois bem, já que você é tão espiritual, vamos ao topo
do templo de Herodes e atira-te lá embaixo. Deus o acudirá e
você não ficará sequer machucado". Isto é conhecido como
enfatuação espiritual. Eu sou tão espiritual que estou acima
das preocupações da carne e acima deste mundo. Mas Jesus é
encarnado, não é? Então ele diz: "Você não tentará o
senhor, teu Deus". Essas são as três tentações de
Cristo, tão relevantes hoje quanto no ano 30 de nossa era.
O Buda, também, se
dirige à floresta e lá entretem conversações com os gurus da
época. Então ultrapassa-os e, após um período de provações
e de busca, chega à árvore boddhi, a árvore da
iluminação, onde igualmente enfrenta três tentações (isso
quinhentos anos antes de Cristo). A primeira tentação é a da
luxúria, a segunda, a do medo e a terceira, a da submissão à
opinião alheia.
Na primeira tentação, o Senhor da Luxúria
exibe suas três belíssimas filhas diante de Sidarta. Seus nomes
são Desejo, Satisfação e Arrependimento - passado, presente e
futuro. Mas o Buda, que já se havia libertado do apego a toda a
sensualidade, não se comoveu.
Então o Senhor da Luxúria se transformou no
senhor da Morte e lançou contra Sidarta, o
Buda, todas as armas de um exército de monstros. Se Sidarta
se apavorar, todas as armas se materializariam. Mas o Buda tinha
encontrado em si mesmo aquele ponto imóvel, interior, o self,
como diria Jung, que pertence à eternidade, intocado pelo tempo.
Uma vez mais não se comoveu e as armas atiradas se transformaram
em flores de reverência.
Finalmente, o Senhor da Luxúria e da Morte se
transformou no temível Senhor dos Deveres Sociais, e perguntou:
"Meu jovem, você não leu os jornais da manhã de hoje?
Não sabe o que há para ser feito?" A resposta do Buda foi simplesmente tocar o chão com as
pontas dos dedos da sua mão direita. Então a voz da
deusa-mãe/deus-pai do universo se fez ouvir no horizonte,
dizendo: "Este aqui é meu filho amado, e já se doou de tal
forma ao mundo que não há mais ninguém aqui a quem dar ordens.
Desista dessa insensatez." Enquanto isso, o elefante, no
qual estava o Senhor dos Deveres Sociais, curva-se em reverência
ao Buda e toda a côrte do Antagonista se
dissolveu, como num sonho. Naquela noite, o Buda
atigiu a iluminação e permaneceu no mundo, pelos cinqüenta
anos seguintes, ensinando o caminho da extinção dos grilhões
do egoísmo.
Pois bem, as duas primeiras tentações - a do
desejo e a do medo - são as mesmas que Adão e Eva parecem ter
experimentado, de acordo com o extraordinário quadro de Ticiano,
concebido quando o pintor estava com noventa e quatro anos de
idade. A árvore é o mitológico aix mundi, aquele ponto
em que tempo e eternidade, movimento e repouso, são um só, e ao
redor do qual revolvem todas as coisas. Ela aparece alí,
representada apenas em seu aspecto temporal, como a árvore do
conhecimento do bem e do mal, ganho e perda, desejo e medo. À
direita está Eva, que vê o Tentador sob a forma de uma
criança, oferecendo-lhe a maçã, e ela é movida pelo desejo.
Adão, do lado oposto, vê os pés monstruosos do tentador
ambicioso, e é movido pelo medo. Desejo e medo: eis as duas
emoções pelas quais é governada toda a vida na terrra. O
desejo é a isca, a morte é o arpão.
Adão e Eva se deixaram tocar; o Buda, não.
Adão e Eva deram origem à vida e foram estigmatizados por Deus;
o Buda ensionou a libertar-se do medo de viver.
No filme de Geoge Lucas, Guerra nas
Estrelas o vilão Darth Vader representa uma figura
arquetípica. Ele é um monstro porque não desenvolveu a
própria humanidade. Quando ele retira a sua máscara, o que
vemos é um rosto informe, de alguém que não se desenvolveu
como indivíduo humano. Ele é um robô. É um burocrata, vive
não nos seus próprios termos, mas nos termos de um sistema
imposto. Este é o pergio que hoje enfrentamos, como ameaça às
nossas vidas. O sistema vai conseguir achatá-lo e negar a sua
própria humanidade, ou você conseguirá utilizar-se dele para
atingir seus propósitos humanos? Como se relacionar com o
sistema de modo a não o ficar servindo compulsivamente? O que é
preciso é aprender a viver no tempo que nos coube viver, como
verdadeiros seres humanos. E isso pode ser feito mantendo-se fiel
aos próprios ideais, como Luke Skywalker no filme, rejeitando as
exigências impessoais com que o sistema pressiona. Ainda que
você seja bem sucedido na vida, pense um pouco: Que espécie de
vida é essa? Que tipo de sucesso é esse que o obrigou a nunca
mais fazer nada do que quis, em toda a sua vida? Vá aonde seu
corpo e a sua alma desejam ir. Não deixem que escolham por
você. Quando você sentir que encontrou um caminho, que é por
alí, então mantenha-se firme no caminho que você escolheu, e
não deixe ninguém desvia-lo dele.
Você poderá dizer: "isso é ótimo para
a imaginação de um George Lucas ou para as teorias de um Joseph
Campbell, mas não é o que acontece em minha vida".
Errdo! Você pode apostar que acontece, sim -
e se a pessoa não for capaz de reconhece-lo, isso poderá
transforma-lo num Darth Vader. Se o indivíduo insiste num
determinado programa e não dá ouvidos ao próprio coração,
corre o risco de um colapso esquizofrênico. Tal pessoa
colocou-se a si mesma fora do centro, alistou-se num programa de
vida que não é, em absoluto, aquilo em que o corpo está
interessado. O mundo está cheio de pessoas que deixaram de ouvir
a si mesmos, ou ouviram apenas os outros, sobre o que deviam
fazer, como deviam se comportar e quais os valores segundo os
quais deveriam viver. Mas qualquer um tem potencialidade para
correr e salvar uma criança. Está no interior de cada um a
capacidade de reconhecer os valores da vida, para além da
preservação do corpo e das ocupações do dia-a-dia.
Os mitos estimulam a tomada de consciência da
sua perfeição possível, a plenitude da sua força, a
introdução da luz solar no mundo. Destruir monstros é destruir
coisas sombrias. Os mitos o apanham, lá no fundo de você mesmo.
Quando menino, você os encara de um modo. Mais tarde, os mitos
lhe dizem mais e mais e muito mais. Quem quer que tenha
trabalhado seriamente com idéias religiosas ou míticas sabe
que, quando crianças, nós as aprendemos num certo nível, mas
depois outros níves se revelam. Os mitos estão muito perto do
inconsciente coletivo, e por isso são infinitos na sua
revelação.
Joseph Campbell
Bibliografia Sugerida
Recomendo enfáticamente a leitura do livro:
O Poder do Mito, de Joseph Campbell,
Editora Palas Athena, São Paulo, 1990.
MITO,
RITO E RELIGIÃO
É necessário deixar bem claro, nesta tentativa de conceituar o
mito, que o mesmo não tem aqui a conotação usual de fábula,
lenda, invenção, ficção, mas a acepção que lhe atribuíam e
ainda atribuem as sociedades arcaicas, as impropriamente
denominadas culturas primitivas, onde mito é o relato de um
acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a
intervenção de entes sobrenaturais. Em outros termos, mito, é
o relato de uma história verdadeira, ocorrida nos tempos dos
princípios, quando com a interferência de entes sobrenaturais,
uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o
cosmo, ou tão-somente um fragmento, um monte, uma pedra, uma
ilha, uma espécie animal ou vegetal, um comportamento humano.
Mito é, pois, a narrativa de uma criação: conta-nos de que
modo algo, que não era, começou a ser.
De outro lado, o mito é sempre uma representação coletiva,
transmitida através de várias gerações e que relata uma
explicação do mundo. Mito é, por conseguinte, a parole, a
palavra "revelada", o dito. E, desse modo, se o mito
pode se exprimir ao nível da linguagem, "ele é, antes de
tudo, uma palavra que circunscreve e fixa um acontecimento".
"O mito é sentido e vivido antes de ser inteligido e
formulado. Mito é a palavra, a imagem, o gesto, que circunscreve
o acontecimento no coração do homem, emotivo como uma criança,
antes de fixar-se como narrativa".
O mito expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência
é efetivamente uma representação coletiva, que chegou até
nós através de várias gerações. E, na medida em que pretende
explicar o mundo e o homem, isto é, a complexidade do real, o
mito não pode ser lógico: ao revés, é ilógico e irracional.
Abre-se como uma janela a todos os ventos; presta-se a todas as
interpretações. Decifrar o mito é, pois, decifrar-se. E, como
afirma Roland Barthes, o mito não pode, conseqüentemente,
"ser um objeto, um conceito ou uma idéia: ele é um modo de
significação, uma forma". Assim, não se há de definir o
mito "pelo objeto de sua mensagem, mas pelo modo como a
profere".
É bem verdade que a sociedade industrial usa o mito como
expressão de fantasia, de mentiras, daí mitomania, mas não é
este o sentido que hodiernamente se lhe atribui.
O mesmo Roland Barthes, aliás, procurou reduzir, embora
significativamente, o conceito de mito, apresentando-o como
qualquer forma substituível de uma verdade. Uma verdade que
esconde outra verdade. Talvez fosse mais exato defini-lo como uma
verdade profunda de nossa mente. É que poucos se dão ao
trabalho de verificar a verdade que existe no mito, buscando
apenas a ilusão que o mesmo contém. Muitos vêem no mito
tão-somente os significantes, isto é, a parte concreta do
signo. É mister ir além das aparências e buscar-lhe os
significados, quer dizer, a parte abstrata, o sentido profundo.
Talvez se pudesse definir mito, dentro do conceito de Carl Gustav
Jung, como a conscientização de arquétipos do inconsciente
coletivo, quer dizer, um elo entre o consciente e o inconsciente
coletivo, bem como as formas através das quais o inconsciente se
manifesta.
Compreende-se por inconsciente coletivo a herança das vivências
das gerações anteriores. Desse modo, o inconsciente coletivo
expressaria a identidade de todos os homens, seja qual for a
época e o lugar onde tenham vivido.
Arquétipo, do grego "arkhétypos", etimologicamente,
significa modelo primitivo, idéias inatas. Como conteúdo do
inconsciente coletivo foi empregado pela primeira vez por Yung.
No mito, esses conteúdos remontam a uma tradição, cuja idade
é impossível determinar. Pertencem a um mundo do passado,
primitivo, cujas exigências espirituais são semelhantes às que
se observam entre culturas primitivas ainda existentes.
Normalmente, ou didaticamente, se distinguem dois tipos de
imagens:
a) imagens ( incluídos os sonhos
) de caráter pessoal, que remontam a experiências pessoais
esquecidas ou reprimidas, que podem ser explicadas pela anamnese
individual;
b) imagens ( incluídos os sonhos
) de caráter impessoal, que não podem ser incorporados à
história individual. Correspondem a certos elementos coletivos:
são hereditárias.
A palavra textual de Jung ilustra melhor o que expôs: "Os
conteúdos do inconsciente pessoal são aquisições da
existência individual, ao passo que os conteúdos do
inconsciente coletivo são arquétipos que existem sempre a
priori.
Embora se tenha que admitir a importância da tradição e da
dispersão por migrações, casos há e muito numerosos em que
essas imagens pressupõem uma camada psíquica coletiva: é o
inconsciente coletivo. Mas, como este não é verbal, quer dizer,
não podendo o inconsciente se manifestar de forma conceitual,
verbal, ele o faz através de símbolos. Atente-se para a
etimologia de símbolo, do grego "sýmbolon", do verbo
"symbállein", "lançar com", arremessar ao
mesmo tempo, "com-jogar". De início, símbolo era um
sinal de reconhecimento: um objeto dividido em duas partes, cujo
ajuste e confronto permitiam aos portadores de cada uma das
partes se reconhecerem. O símbolo é, pois, a expressão de um
conceito de eqüivalência. Assim, para se atingir o mito, que se
expressa por símbolos, é preciso fazer uma eqüivalência, uma
"con-jugação", uma "re-união", porque, se
o signo é sempre menor do que o conceito que representa, o
símbolo representa sempre mais do que seu significado evidente e
imediato.
Em síntese, os mitos são a linguagem imagística dos
princípios. "Traduzem" a origem de uma instituição,
de um hábito, a lógica de uma gesta, a economia de um encontro.
Na expressão de Goethe, os mitos são as relações permanentes
da vida.
Se mito é, pois, uma representação coletiva, transmitida
através de várias gerações e que relata uma explicação do
mundo, então o que é mitologia?
Se mitologema é a soma dos elementos antigos transmitidos pela
tradição e mitema as unidades constitutivas desses elementos,
mitologia é o "movimento" desse material: algo de
estável e mutável simultaneamente, sujeito, portanto, a
transformações. Do ponto de vista etimológico, mitologia é o
estufo dos mitos, concebidos como história verdadeira.
Quanto à religião, do latim "religione", a palavra
possivelmente se prende ao verbo "religare", ação de
ligar.
Religião pode, assim, ser definida como o conjunto das atitudes
e atos pelos quais o homem se prende, se liga ao divino ou
manifesta sua dependência em relação a seres invisíveis tidos
como sobrenaturais. Tomando-se o vocábulo num sentido mais
estrito, pode-se dizer que a religião para os antigos é a
reatualização e a ritualização do mito. O rito possui,
"o poder de suscitar ou, ao menos, de reafirmar o
mito".
Através do
rito, o homem se incorpora ao mito, beneficiando-se de todas as
forças e energias que jorraram nas origens. A ação ritual
realiza no imediato uma transcendência vivida. O rito toma,
nesse caso, "o sentido de uma ação essencial e primordial
através da referência que se estabelece do profano ao
sagrado". Em resumo: o rito é a praxis do mito. É o mito
em ação. O mito rememora, o rito comemora.
Rememorando os mitos, reatualizando-os, renovando-os por meio de
certos rituais, o homem torna-se apto a repetir o que os deuses e
os heróis fizeram "nas origens", porque conhecer os
mitos é aprender o segredo da origem das coisas. "E o rito
pelo qual se exprime ( o mito ) reatualiza aquilo que é
ritualizado: re-criação, queda, redenção". E conhecer a
origem das coisas - de um objeto, de um nome, de um animal ou
planta - "eqüivale a adquirir sobre as mesmas um poder
mágico, graças ao qual é possível dominá-las,
multiplicá-las ou reproduzí-las à vontade". Esse retorno
às origens, por meio do rito, é de suma importância, porque
"voltar às origens é readquirir as forças que jorraram
nessas mesmas origens". Não é em vão que na Idade Média
muitos cronistas começavam suas histórias com a origem do
mundo. A finalidade era recuperar o tempo forte, o tempo
primordial e as bênçãos que jorraram illo tempore.
Além do mais, o rito, reiterando o mito, aponta o caminho,
oferece um modelo exemplar, colocando o homem na
contemporaneidade do sagrado. É o que nos diz, com sua
autoridade, Mircea Eliade: "Um objeto ou um ato não se
tornam reais, a não ser na medida em que repetem um arquétipo.
Assim a realidade se adquire exclusivamente pela repetição ou
participação; tudo que não possui um modelo exemplar é vazio
de sentido, isto é, carece de realidade".
O rito, que é o aspecto litúrgico do mito, transforma a palavra
em verbo, sem o que ela é apenas lenda, "legenda", o
que deve ser lido e não mais proferido.
À idéia de reiteração prende-se a idéia de tempo. O mundo
transcendente dos deuses e heróis é religiosamente acessível e
reatualizável, exatamente porque o homem das culturas primitivas
não aceita a irreversibilidade do tempo: o rito abole o tempo
profano, cronológico, é linear e, por isso mesmo, irreversível
( pode-se "comemorar" uma data histórica, mas não
fazê-la voltar no tempo ), o tempo mítico, ritualizado, é
circular, voltando sempre sobre si mesmo. É precisamente essa
reversibilidade que liberta o homem do peso do tempo morto,
dando-lhe a segurança de que ele é capaz de abolir o passado,
de recomeçar sua vida e recriar seu mundo. O profano é tempo da
vida; o sagrado, o "tempo" da eternidade.
A "consciência mítica", embora rejeitada no mundo
moderno, ainda está viva e atuante nas civilizações
denominadas primitivas: "O mito, quando estudado ao vivo,
não é uma explicação destinada a satisfazer a uma curiosidade
científica, mas uma narrativa que faz reviver uma realidade
primeva, que satisfaz as profundas necessidades religiosas,
aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem social
e mesmo a exigências práticas. Nas civilizações primitivas, o
mito desempenha uma função indispensável: ele exprime, exalta
e codifica a crença; salvaguarda e impõe os princípios morais;
garante a eficácia do ritual e oferece regras práticas para a
orientação do homem. O mito é um ingrediente vital da
civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é,
ao contrário, uma realidade viva, à qual se recorre
incessantemente; não é, absolutamente, uma teoria abstrata ou
uma fantasia artística, mas uma verdadeira codificação da
religião primitiva e da sabedoria prática".
Bibliografia Mitologia Grega - Junito de Souza
Brandão Volume I - Editora Vozes