logo06.JPG (17693 bytes). INFORMAÇÃO COLUNISTAS BR-116 HISTÓRIA
DO ROCK
FICÇÃO RESENHAS
 

Built to Spill
Por
Alexandre Matias

"Você estava errado quando disse que tudo ia ficar bem", canta Doug Martsch, líder, vocalista e guitarrista d Built to Spill no novo disco do trio, Keep it Like a Secret (Warner, importado). Sobre guitarras que ficam mudas de repente (logo após explodirem um poderoso e cativante riff), ele lamenta as promessas que lhe foram feitas. Algumas previam um futuro assustador e apenas uma garantia que tudo se resolveria. As primeiras hipóteses foram bem sucedidas e o sucesso que havia sido aventado a Martsch - e a toda uma geração - foi sistematicamente sendo destruído, restando apenas o ar de "eu não disse?" dos que preveram tempos difíceis.

O rock acertou. Foi ele quem anteviu que a vida não é tão bonitinha e feliz como uma canção de reggae. Quando Martsch diz que "você estava errado", ele se dirige a Bob Marley, que prometeu, em No Woman No Cry que "tudo ia ficar bem" ("everything’s gonna be alright"). E ele volta-se para os mitos do rock clássico (não confundir rock clássico com rock progressivo, rock clássico é a geração 60/70 que estabeleceu o rock como gênero definitivo da segunda metade do século 20) e reconhece que eles estavam certos.

Vira-se para o Pink Floyd e conforma-se: "Você estava certo quando disse que éramos apenas tijolos em uma parede" ("bricks in the wall", em referência Another Brick in the Wall). Para Jimi Hendrix, ele lamenta estar "certo quando disse que a depressão é uma bagunça frustrante" (de Manic Depression). Para os Stones, ele lamenta que eles estavam "certos ao dizer que você não consegue sempre o que quer" ("you can’t always get what you want", da música de mesmo nome). Para Dylan, ele abaixa a cabeça e pede desculpas ao duvidar do mestre: "você estava certo quando disse que uma chuva pesada iria cair" (em referência a A Hard Rain is Gonna Fall).

A chuva pesada caiu e o sistema domou o rock nos anos 70. Pegou toda aquela rebeldia elétrica que juntava multidões de moleques em torno de seus ideais e a transformou num monstro pacífico e frágil, tão inofensivo quanto gigantesco. Entre os anos 70 e 80, o rock perdeu sua força e sua atitude contestadora, cedendo à indústria e ao comércio. Para recuperar sua credibilidade, ele precisou recriar-se através do punk rock, começando toda história de novo.

O Built to Spill é órfão do rock clássico, mas foi criado pelo punk. Ou melhor, pelo indie rock, a geração de bandas influenciadas pelo punk que criou seu próprio universo paralelo (longe da mídia e do grande público) durante os anos 80. E mesmo crescendo num reino onde a microfonia, a distorção e a guitarra base eram ícones máximos, logo os genes falaram mais alto - tanto que o grupo é sinônimo de rock épico. Mas não pense em epicidade progressivóide. Apesar de tremendos solos de guitarra, da clareza das notas e das letras quase herméticas, o sotaque é de indie rock. Indie rock clássico.

Difícil conceber? Nem tanto. A banda modelo do Hüsker Dü sempre foi os Beatles. Os Replacements não batizaram seu melhor disco de Let it Be à toa. Lembre de quem evocava rock clássico no começo dessa década - pólos diferentes quanto Smashing Pumpkins e Jane’s Addiction misturavam psicodelia, metal e melodia sem cair em algum clichê de rock institucionalizado pelo sistema e sem perder o crédito "indie". Em outras palavras, o indie rock era no final dos anos 80 exatamente o que o rock clássico era no começo dos anos 70. Acontece que a mídia estava mais preocupada com o Supertramp e com os Dire Straits (dóceis e obedientes). Pra que iriam ter o trabalho de domesticar toda uma outra geração? Bastava desprezá-la.

Assim, o Built to Spill passou despercebido pelos anos 90. A história começa em 93, quando Doug Martsch - fundador e único membro fixo do grupo -, deixou seu grupo original, o Treepeople, e montou o Built to Spill com dois amigos - Ralf Youtz, baterista, e Brett Netson, baixista. Vindos da minúscula cidade de Boise, Idaho, o grupo tinha poucas chances de sobrevivência nos tempos em que o rock alternativo de proveta dominava as paradas. Foram para independência musical como toda banda deveria ir no começo da carreira e, sem grandes possibilidades de crescer em termos de mídia, passaram a criar sua lenda pessoal no underground americano.

Depois de dois discos (Ultimate Alternative Wavers e There’s Nothing Wrong With Love) e diversos projetos paralelos (entre eles a participação em um disco dos Halo Benders), EPs e faixas em coletâneas, a marca registrada do grupo estava disseminada entre as antenas mais aguçadas da cena indie mundial. E essa marca era apenas Doug Martsch. Trocando de baixistas e bateristas o tempo todo, o guitarrista se afirmava como único responsável pelo som do grupo. Guitarras pesadas e limpas, tocando três ou quatro riffs matadores por canção, melodias que repetem frases até elas fixarem no cérebro (e mudando radicalmente o sentido assim que assimiladas), solos, mudança de tempo nas canções e uma voz que mistura a fragilidade áspera do vocal de Neil Young com o timbre esganiçado de Geddy Lee.

Depois de dois discos independentes, foram capturados pela gravadora Warner e estabeleceram, no título do disco, que seriam perfeitos dali em diante. Perfect from Now On não decolou como muitos esperavam, mas serviu para aquecer e cristalizar a formação atual do grupo, com Brett Nelson no baixo e Scott Plouf (dos Spinanes) na bateria. A pretensão do título fez com que eles repensassem sua posição em relação ao sucesso e perceberam que eles não eram uma banda que aconteceria da noite pro dia. Eram uma banda restrita àqueles que, sem querer ou não, chegaram ao seu som.

Ao batizar seu disco novo de Keep it Like a Secret ("guarde como um segredo"), o Built to Spill explica sua intenção. Compre esse disco e curta sozinho, perceba o prazer que nossas músicas podem propiciar a você - é isso que eles tentam dizer. E, como um segredo bem guardado nunca fica seguro, aos poucos seus melhores amigos (aqueles que você divide segredos e confidências) vão conhecendo, tornando maior a fama do grupo. Ao pedirem para guardar como um segredo, o trio pede aos fãs que espalhem aos poucos a beleza escondida por trás do disco.

E que beleza. Keep it Like a Secret tem tanto a ousadia do pós-punk quanto a livre e despreocupada movimentação de instrumentos de rock clássico. A dinâmica entre os instrumentos e a calma com que o grupo executa as canções nos levam a pensar em ensaios intermináveis, canções entrando umas nas outras, jam sessions que varam a madrugada, shows perfeitos. Os três adoram tocar uns com os outros e o guitarrista é o principal motivo de estarem juntos - por isso os dois o seguem.

Citar uma ou outra faixa do disco é dispensável, quase todas as 10 são excelentes. As canções propriamente ditas também não importam muito, as letras são difíceis de entrar, o sentido não é importante para entendermos (veja You Were Right, citada no começo, que também pode ser lida como uma canção de amor), as vertentes de interpretação ficam a cargo do ouvinte.

O importante é que elas nos levam a batalhas instrumentais perfeitas. O grupo age como se fosse um só instrumento, de tão entrosado. O baixo de Brett Nelson responde com destreza aos gritos poéticos da guitarra de Doug, que não reinventa o instrumento, apenas nos revelando o óbvio. Com uma perfeição que parece aumentar a cada audição, o Built to Spill é fascinante como uma dimensão paralela, onde a realidade como conhecemos é um pouco diferente. Este pouco é o suficiente. E Keep it Like a Secret também. Ouça você mesmo.

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