NAVALHA
NA CARNE Luís Goulart |
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Levando-se em conta que Vera Fisher é a única diva que temos no Brasil, ela merecia um filme à sua altura para que pudéssemos comemorar esse fato. Mas nesse filme de Nevile DAlmeida, baseado em texto teatral de Plínio Marcos, Vera Fisher está tão mal dirigida que chega a ser constrangedor. Dói mais ainda quando se sabe que ela está no auge, mesmo não sendo mais aquela miss Brasil de anos atrás. Vera Fisher respira talento e drama, é um dínamo, uma força da natureza e, como tal, precisa ser dominada e sua fúria levada a produzir beleza. De outro modo conduz ao desastre. É impressionante que a própria vida da atriz seja a sucessão de tragédias que todo mundo conhece. Isso faz uma diva. O Brasil talvez não a mereça. Nossa hipocrisia patriarcal nem sequer tangenciou o seu hálito. O coro dos descontentes e mal amados não percebe que a uma diva tudo é permitido. Nevile DAlmeida talvez tenha se deixado fascinar pela sua beleza e esqueceu-se de que ali ela era a atriz do filme, ou talvez tenha sucumbido ao fascínio da sua personalidade ciclotímica (o filme foi finalizado nas vésperas da internação de Vera) ou talvez, exatamente por causa do drama pessoal da Vera mulher, o diretor tenha querido poupá-la de uma direção mais tirânica e pessoal. Qualquer coisa dá para entender mas Vera merecia um filme ao nível do seu drama. Nevile deveria tê-la expremido, arrancado dela o talento que ela tem. Entretanto, optou pela contemplação do seu descontrole vulcânico. O filme tem edição de som péssima. Os diálogos originais da peça de Plinio Marcos são cortantes como tudo que ele escreve, mas nesse filme soam falsos e repetitivos. Plínio Marcos é para teatro. A adaptação tem que ser muito boa para valer a pena. Palavrões ditos do começo ao fim cansam o expectador e em pouco tempo perdem a força. Não bastasse o péssimo som, o ator Jorge Perrugoria é cubano e não se entende nada do que ele diz. |
As personagens estereotipadas ao extremo beiram o alegórico. A certa altura a personagem de Vera questiona se eles são mesmo gente. Ela acha que não é possível que gente de verdade desça àquelas profundezas degradantes. Nessa hora dá o que pensar. Por mais estereotipadas que sejam as três personagens, o gigilô, o gay e a prostituta, são estranhamente mais reais quanto mais se personificam com o estereótipo. Sim, eles são gente. É terrível, mas há gente assim. Mário Quintana dizia: "O que é mais triste em um pássaro engaiolado é que ele parece estar feliz". O que tornam tristes esses personagens de Navalha na Carne é que eles parecem gente. Há cenas de cinema que são eternas. A cena de tristeza mais definitiva até hoje para mim era a de Giulieta Massina em Noites de Cabíria, de Felini. Maravilhado com aquela cena Caetano Veloso cantou " ...Pálpebras de neblina a pele dágua, lágrima negra tinta...aquela cara é o coração de Jesus". As personagens de Vera Fisher e de Giulieta Massina são prostitutas apaixonadas por gigolôs que as usam até o extremo. Assim como a lágrima negra de Giulieta (Cabíria), a maquiagem borrada de Vera (Neusa Suely)passou a ser um ícone. Na sequência final de Navalha na Carne a diva se redime e nos mostra o que talvez venha a ser a mais bela cena de tristeza já filmada. Algo digno de Felini, um tapa na cara do espectador. Abandonada pelo seu gigolô, depois de muito chorar, Vera vai até a geladeira do seu quarto de pensão vagabunda e apanha um embrulho de papel, senta no chão, abre o pacote e morde num sanduíche de pão com mortadela. Quem já comeu chorando deve imaginar o que é! A maquiagem toda borrada e as lágrimas derramando em uma torrente de verdadeiro talento, dor e paixão. É a imagem do abandono! É um ícone! Depois, abre a janela do quarto e uma luz inunda seu rosto marcado pela tristeza. Quase dá para ouvir Giulieta Massina dizendo: "Che luce estrana!" Talvez o filme não valha a pena, mas essa sequência vale o filme! Só para terminar, a cena de Vera crucificada e nua é algo além das palavras. É para a eternidade! |
Luís Goulart é estudante da Facom
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