Quando Marx e Engels encaravam no seu tempo a possibilidade da revolução proletária, faziam-no nao porque achassem que o capitalismo houvesse já esgotado todas as possibilidades de desenvolvimento. O que eles pensavam é que, por um superior esforço organizativo e consciencializador, dando mostras de audácia e iniciativa revolucionária, o movimento operário poderia abreviar o reino do capital, forçando a sua saída de cena antecipada.
A partir porém dos inícios do séc. XX, e particularmente com a contagem decrescente para o Armagedão belicista, comecou a predominar entre os melhores pensadores marxistas (Lenine, Bukharine, Trotsky, Rosa Luxemburgo, etc.) a ideia de que o capitalismo estava, pelo próprio desenvolvimento natural das suas contradições internas, na sua fase terminal e agonizante. Começaram a surgir as visões "catastrofistas". Comecou a imperar a ideia de que esta era a hora aprazada para a revolução proletária, sob pena de sobrevir uma decadência económica geral (1) e o apodrecimento da situação social. "Socialismo ou barbárie".
Quase noventa anos passados sobre estas vozes antediluvianas, forçoso é reconhecer que o capitalismo sobreviveu afinal bastante bem às guerras e deu mesmo provas de uma grande vitalidade nos "trinta gloriosos" anos que se seguiram a 1945. As relações de produção capitalistas foram finalmente estendidas a todos os sectores económicos e a todo o globo. A produtividade do trabalho cresceu exponencialmente. O pacto social fordista e social-democrata funcionou nos países avançados, pacificando (e institucionalizando) notavelmente os antagonismos de classe no seu seio. Tudo êxitos inegaveis da ordem burguesa que, por muito tempo (alguns pensarâo: definitivamente) arredaram a revolução social da ordem do dia. Nada mau, para um moribundo.
Quando ruiu fragorosamente o capitalismo de Estado que, durante setenta anos, pensou poder ombrear e finalmente superar o seu congénere demoliberal, o momento foi mesmo de alguma euforia para os ideólogos burgueses. E todavia, desde meados da década de 70, o sistema está em crise profunda. Já lá iremos. Antes disso, temos que poder explicar esta estranha vitalidade de que o sistema deu de facto provas durante a melhor parte deste século. Este é um problema fulcral para o marxismo, mesmo que para isso tenha que amputar ou reavaliar substancialmente uma boa parte da sua tradição mais romântica e apaixonada. É isso mesmo que um pensamento que se pretende vivo e actuante tem o dever de fazer.
Claude Bitot propõe neste livro uma tese extremamente ousada, embora a meu ver ainda insegura e tacteante. Para ele, o período de guerra (1914-45) correspondeu naturalmente não à agonia do sistema capitalista, mas a uma sua crise de crescimento. A seu ver, a(s) guerra(s) e o fascismo foram provocados pela reacção de camadas sociais retrógradas (aristocracia, proprietários, funcionários, pequena burguesia) ao domínio pleno e efectivo da burguesia. Só com o triunfo das potências atlânticas (lideradas pelos EUA, a mais avançada das nações capitalistas) foram por completo derrotadas estas “sobrevivências do antigo regime”, para parafrasear o historiador A. Meyer, no qual Bitot se inspirou. Esta vitória marcou ainda a passagem do dominio “formal” ao dominio “real” do capital, ou seja, basicamente, a exploração deixou de se basear na extracção da mais-valia absoluta, passando a basear-se (através do embaratecimento dos meios de subsistência, proporcionado pela penetração do capitalismo na agricultura) na extracção de mais-valia relativa.
Os problemas que esta tese levanta são quase tantos como os que resolve, ou tenta resolver. A sua interpretação das guerras mundiais desvaloriza sobremaneira a teoria do imperialismo e o papel das rivalidades entre as potências. Nem fica afinal muito claro de que modo é que as guerras participaram na resolução deste ajuste de contas final entre “antigo regime” e capitalismo. Estas contradições (que existiam sem dúvida alguma na época) atravessavam transversalmente todas as nações (pelo menos as europeias) que participaram nos conflitos. Bitot admite mesmo que as burguesias industriais participaram alegre e convictamente, ao lado dos seus estados-maiores reaccionários, na matança e no delírio chauvinista. Por outro lado, a sua interpretação do fascismo vai contra tudo o que dele já foi dito ate hoje. Fica ademais sugerida a ideia (extremamente perigosa) de que fascismo e guerra não são já armas próprias da burguesia moderna, mas instrumentos perimidos de combates travados em tempos nas suas linhas recuadas.
Não sendo as respostas ainda plenamente convincentes, o mérito fica no entanto de se ter apontado devidamente o problema. Se a pópria ordem burguesa só atingiu assim a sua plena maturidade após as guerras mundiais da primeira metade do séc. XX, não temos senão que concluir que, até então, foram precoces e votadas ao fracasso todas as revoltas proletárias. 1848,1871, 1917-23, são movimentações desesperadas e sem saída do ponto de vista da luta comunista. À revolução russa de 1917 estaria destinado o desenlace mais cruel: não a derrota às mãos dos seus inimigos, mas o apodrecimento e a degeneração. Entretanto, a organização crescente da classe operária que se opera a partir do último quartel do século passado nunca foi verdadeiramente animada pela vontade de derrubar o capitalismo, mas antes de o reformar progressivamente. Ela abre também o caminho do domínio “formal” para o domínio “real” do capital. Direitos associativos, sufrágio universal, Estado-providência são etapas desta maturação da ordem capitalista, que atingiria o seu apogeu no final dos anos sessenta do séc. XX.
Se Bitot se mostra irónico perante as análises e reivindicações de iminência da revolução comunista feitas sucessivamente de há século e meio para cá, não hesita porém um instante em fazer ele próprio, e peremptoriamente, o mesmíssimo diagnóstico. A seu ver, o capitalismo encontra-se desde meados da década de setenta no seu fim de ciclo histórico (2). A crescente composição orgânica do capital desemboca, como previsto por Karl Marx, na queda tendencial da taxa de lucro. As contratendências a esta queda puderam ser mobilizadas até aqui com sucesso, a ponto de esta lei ter sido longamente escarnecida pelos economistas burgueses e abandonada envergonhadamente por muitos “marxistas”. E no entanto aí está a longa crise desde 1975 a lembrar-nos que só o trabalho vivo cria mais-valia. A diminuição da participação do capital variável no conjunto total do capital faz assim pressão para a queda da taxa de lucro.
A burguesia tenta naturalmente reagir a essa quebra da rentabilidade do capital. É a hora do neoliberalismo, do desmantelamento do Estado-providência, do ataque aos salários reais. Mas se a burguesia consegue assim algum alívio para a sua taxa de lucro, pela mesma causa provoca o retraimento da procura solvível para os seus produtos. Corre assim o risco de criar crises cada vez mais agudas de sobreprodução, enquanto os padrões de vida se degradam e há uma “regressão social" generalizada. Em feroz concorrência uns contra os outros, facilmente os capitalistas caem então na tentação de licenciar mais trabalhadores, substituindo-os por capital constante. Com o resultado de baixar ainda mais a taxa de lucro... Seguindo-se naturalmente mais ataques aos rendimentos do trabalho.
Para Bitot, é nesta sequência que emergirá com toda a naturalidade uma insurreição proletária vitoriosa. Primeiro (estamos nessa fase), os trabalhadores envolver-se-ão em lutas defensivas e conservadoras de privilégios particulares. Perdidos estes, a massa proletária será progressivamente homogeneizada e nivelada por baixo. Nessa situação, a sua consciência de classe e combatividade emergirão poderosamente, sendo a luta dirigida agora contra o sistema e pela tomada do poder. É bem achado, e um curso plausível de acontecimentos. Mas não vejo garantias suficientes de que tudo se vá passar deste modo. O materialismo histórico ainda não é uma ciência exacta. Enfim, ninguém poderá acusar Bitot de não ter fixado claramente qual a prova prática das suas teses, mesmo correndo o risco de vir a ser objecto dos sarcasmos de uma nova geração de marxistas.
Uma das asserções mais curiosas de Bitot é a de que, quanto mais madura estiver a situação económica para o socialismo, mais o seu triunfo pode ser obtido por meios relativamente pacíficos. O partido é entendido em acepção lata, que pode dispensar a sua organização formal à imagem dos outros partidos políticos (burgueses). A ditadura do proletariado dissolvera os órgãos do Estado burguês e subtitui-los-á por órgãos representativos livremente eleitos e revogáveis. Exercerá naturalmente a repressão sobre o revanchismo da burguesia mas sendo a situação política favorável, a “ditadura” deverá normalmente consentir amplíssimas liberdades públicas. As nações avançadas assistirão gratuitamente as mais pobres, até as fazer atingir o seu próprio nível de desenvolvimento e instrução. Será posto em prática um programa político imediato constante de: 1) planeamento concertado entre todas as associações livres do proletariado; 2) redução do tempo de trabalho; 3) um trabalho mais rico e criativo; 4) uma retribuição igualitária entre todos os tipos de trabalho. É este socialismo inferior que abrirá então o caminho ao advento do socialismo superior ou comunismo.
Estamos pois em presença de um projecto ambicioso e de uma obra importante que incondicionalmente saudamos. Mesmo nas suas imperfeições, há aqui em curso um trabalho rigoroso de recriação e vivificação dos conceitos fundamentais do marxismo. Talvez que, na incontornável dialéctica entre o voluntarismo e o determinismo económico estrito, o autor se tenha deslocado um pouco demais na direcção deste último. Entretanto, a irreverência perante certos dogmas estabelecidos e a sua sede permanente de risco e cometimento tornam este livro uma leitura agradável e de grande proveito para quem hoje se obstina insensatamente em compreender e em lutar.
Artigo publicado na revista 'Política Operária' nº 54, Março-Abril de 1996.
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NOTAS:
(*)'Le Communisme n’a pas encore commencé', ed. Spartacus, Paris 1995, 275 pgs. 130 FF. Pedidos a Les Amis de Spartacus - 8, impasse Crozatier 75012 Paris.
(1) Este conceito de decadência é ainda central nas análises dos herdeiros das esquerdas comunistas. Veja-se a recensão muito crítica deste livro, assinada por Adele, em Perspective Internationaliste nº 29, Inverno 1995-96.
(2) Sobre esta questão, um resumo sucinto e elegante pode-se achar em Claude Bitot, ‘Inquérito Ao Capitalismo Dito Triunfante’, Dinossauro, Lisboa 1966, tradução de Francisco Martins Rodrigues.
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Paris, 13 de Maio de 1996
Caro camarada,
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Na sua notícia sobre o meu livro “Le Communisme n’a pas encore commencé” você considera que eu “desvalorizo muito a teoria do imperialismo”. Com efeito, penso que é necessário remetê-la ao seu justo lugar e que ela se tornou obsoleta para nos dar conta do curso histórico do capitalismo moderno, tal como ele se desenrola desde 1945. Marx, no seu estudo do capitalismo, nunca construiu uma “teoria do imperialismo, estádio supremo do capitalismo”. Foram os marxistas do princípio do século (Luxemburgo, Lenine, Hilferding, Boukharine) que o fizeram. Esta teoria tornou-se de seguida uma espécie de vulgata marxista e foi repetida até à saciedade. Vou-me pois esforçar por trazer algumas precisões sobre o assunto.
Eu não nego a existência do fenómeno imperialista, mas como o recordo no meu livro, ele não é próprio do capitalismo. O imperialismo no seu sentido estrito significa a conquista de territórios e a sujeição dos povos que aí habitam, isto por intermédio da força armada. Houve assim um imperialismo grego e romano no mundo antigo, assim como um imperialismo árabe e cristão durante o feudalismo. É verdade que o capitalismo, através do colonialismo, vai por sua vez talhar-se um império. Mas este imperialismo, longe de ser o seu “estádio supremo”, vai antes corresponder à sua fase de acumulação primitiva e de arranque industrial: apossamento, a partir do século XVI, sobre vastos territórios, permitindo-lhe, pela pilhagem, adquirir matérias primas, produtos coloniais e também uma mão-de-obra indígena sobre-explorada. Um tal imperialismo atingiu o seu apogeu no fim do século XIX. De seguida ele entra em declínio e, em 1945, inicia-se um processo de descolonização que lhe põe fim. É verdade que alguns terceiro-mundistas continuam a falar de “neo-colonialismo”, mas isso não corresponde já a qualquer realidade tangível. Eis quanto aos factos. Examinemos agora a razão desta mudança.
Se o imperialismo foi, num primeiro tempo, um factor de desenvolvimento do capitalismo, tornou-se de seguida um travão a esse desenvolvimento. Com efeito, constatamos empiricamente que todos os países que se talharam impérios coloniais (Grã-Bretanha, França, Bélgica, Holanda, Portugal) foram suplantados economicamente a partir dos começos do século XX, por países (E.U.A. e Alemanha desde logo, o Japão em seguida) que tinham muito poucas colónias. A causa é que os países colonisadores, devido às suas conquistas que lhes proporcionavam “rendas de situação”, mão-de-obra barata e mercados protegidos, estavam pouco inclinados a investir e modernizar os seus equipamentos industriais. Os outros países capitalistas, esses, foram forçados a industrializarem-se fortemente a fim de baixar os seus custos de produção e assim se manterem competitivos no mercado mundial. Por este facto, o dinamismo industrial destes últimos iria acabar por levar a melhor sobre os “Estados rendeiros” colonialistas. A partir daí, a descolonização torna-se uma necessidade para os velhos países imperialistas, a fim de atalhar o seu atraso industrial. Assim, na França, é no momento em que ela perde as suas colónias que começa, sob o cajado do Estado gaullista, a modernização do país e das suas infra-estruturas. O mesmo se passou em Portugal, algum tempo depois. Liquidadas as suas colónias, o país enceta a sua marcha para a modernidade capitalista, aderindo mesmo à C.E.. Vê-se pois que, chegado a um estádio superior do seu desenvolvimento, o capitalismo desembaraça-se da sua faceta imperialista que não é já mais que um arcaísmo tanto mais difícil de conservar quanto leva à revolta os povos submetidos. Agora, ele sente-se suficientemente poderoso para funcionar exclusivamente com base nas leis económicas que lhe são próprias: concorrência, competitividade, rentabilidade, tudo num mercado mundial sem limites, tendo por único critério a troca mercantil de equivalentes, excluindo por conseguinte a pilhagem. É este o verdadeiro “estádio supremo” do capitalismo. A “mundialização” de que se fala tanto hoje em dia não é mais do que a manifestação desta lei do mercado que governa agora o planeta em lugar do velho imperialismo com os seus mercados protegidos, os seus proteccionismos, as suas zonas de influência. Quanto à tendência aos monopólios, à fusão do capital bancário e industrial que desemboca no capital financeiro, igualmente características do estádio imperialista, ela tinha já sido analisada por Marx com a lei da concentração do capital, lei que se verifica bem mais nitidamente hoje - com as firmas multinacionais e transnacionais - do que no tempo de Lenine.
Em resumo, a “teoria do imperialismo” que pretendia mais ou menos “completar” ‘O Capital’ de Marx não aguentou o caminho. À guisa de conclusão, contentar-me-ia em observar que uma tal teoria teve por principal efeito ocultar a análise económica de Marx sobre a evolução do capitalismo, análise esta centrada no ciclo do valor e seu final catastrófico: baixa da taxa de lucro que, de simplesmente tendencial, acaba por se tornar absoluta, ao ponto de trazer consigo crises que provocarão o desabamento do modo de produção capitalista.
O meu comentador, Ângelo Novo, acha que proponho no meu livro uma “tese extremamente ousada”, embora, do seu ponto de vista, “ainda incerta e tacteante”, a saber, que o período de 1914-45, em lugar de corresponder a uma “agonia do capitalismo” não teria sido senão uma “crise de crescimento” do mesmo. Não há aí, em verdade, nada de ousado. A partir do momento em que o capitalismo supera as suas crises, é preciso considerá-las todas como simples interrupções passageiras da sua expansão. O facto de que, após 1945, ele tenha podido prosseguir o seu curso mostra à evidência que ele não estava agonizante em 1914-45, mas que apenas encontrou alguns entraves ao seu desenvolvimento, dos quais acabou por se desembarassar. O que desorienta manifestamente Ângelo Novo é que, em lugar de ver neste período de crise duas “guerras imperialistas” eu aí veja uma nova guerra de 30 anos, não para “uma nova partilha do mundo” como é repetido superficialmente, mas para assentar solidamente a dominação capitalista moderna, ainda contestada, bem mais à direita do que à esquerda, em particular por toda uma poderosa corrente reaccionária de que o fascismo foi a expressão mais acabada. Assim, sejamos claros: a fase da “guerra de 30 anos” corresponde a uma guerra capitalista, a uma guerra civil burguesa, que opõe as forças do capitalismo da “dominação real”, ou se se prefere do capitalismo moderno, às da dominação ainda “formal” que haviam prevalecido até aí, forças estas que se haviam acomodado ao antigo capitalismo mas que se apercebiam claramente ameaçadas de esmagamento pelo novo capitalismo. Esta “tese”, para retomar a expressão de Ângelo Novo, longe de levantar mais problemas do que os que “tenta resolver”, como este último pretende, explica porque o capitalismo, após 1945, conheceu, durante os seus “30 gloriosos”, o seu mais brilhante período, viveu em certa medida a sua idade de ouro: uma vez desembaraçado dos entraves que o amarravam ainda, estava agora em condições de chegar, sob todos os planos, como o explico no final do capítulo VII do meu livro (a partir da página 147), ao seu mais completo desenvolvimento. Assim, e desde logo, é totalmente desprovido de sentido pôr a questão de saber se hoje poderá ressurgir o fascismo. Este corresponde a uma fase histórica bem particular do desenvolvimento capitalista, hoje ultrapassada; não é mais que um espantalho agitado por quem não compreende nada do movimento da História.
Hoje o problema do capitalismo é outro: os entraves ao seu desenvolvimento estão no seu próprio seio; ele encontra os seus “limites na sua própria natureza que, a um certo nível da sua evolução, revelam que é ele próprio o entrave maior a esta tendência, e o impelem portanto à sua própria abolição” (Marx, Grundrisse). É por isso que falo de entrada do capitalismo no seu “fim de ciclo”. Mas é aí que Ângelo Novo me reprova, aproveitando para me dizer que “se Bitot se mostra irónico face às análises e reivindicações de iminência da revolução comunista, feitas sucessivamente desde há 150 anos, não hesita porém um instante em fazer ele mesmo, e peremptoriamente, o mesmo diagnóstico”. É evidentemente, e de todo, inexacto. Não anuncio de forma alguma a “iminência da revolução”, nem digo que com este “fim de ciclo” o capitalismo está já agonizante e em desmoronamento. Mas vejo bem onde se situa a verdadeira divergência entre Ângelo Novo e eu: ela não está na apreciação da situação económica actual do capitalismo, ainda bastante ambígua para não dar lugar a interpretações diversas, mas sim no facto de que eu - diferentemente dele, que aí é muito hesitante - considero a evolução actual do capitalismo como devendo desembocar em crises e em lutas de classes que este não poderá enfim evitar e que provocarão a sua queda final. Disso aí, Ângelo Novo não está seguro de todo: “não vejo”, escreve ele, ”garantias suficientes de que tudo se passará desta forma. O materialismo histórico não é uma ciência exacta”. E no final do seu artigo, ele censura-me o meu “determinismo excessivo”. Mais vale então censurá-lo a Marx, que acabo de citar acima, o qual fala de limites do capital que o “impelem à sua própria abolição”. Dito isto, impõe-se uma certa precisão a propósito da teoria de Marx, da qual Ângelo Novo não parece ter tomado consciência em toda a sua extensão.
Que diz, com efeito, esta teoria? Substancialmente, que as contradições objectivas do capitalismo acabarão por provocar lutas de classes revolucionárias por parte do proletariado, as quais acartarão a queda do capitalismo desembocando na ditadura do proletariado, ela própria simples fase transitória para uma sociedade sem classes (carta de Marx, de 5 de Março de 1852, a Joseph Weydemeyer). Se isto é falso ou, enfim, insuficientemente exacto para ser credível, então só nos resta irmos dormir! Só um milagre poderia mudar favoravelmente o rumo das coisas. Pessoalmente, não retive uma hipótese dessas, como dizia Laplace a Napoleão!
A teoria de Marx assenta sobre um certo número de condições que devem estar reunidas para dar lugar a um desenlace revolucionário historicamente positivo. Se tal não for o caso, poderá haver explosões revolucionárias, movimentos sociais de grande envergadura, mas, como a História abundantemente demonstrou, elas não atingirão o seu objectivo, por falta de uma suficiente maturação histórica. Por condições, é preciso entender tanto as objectivas como as subjectivas, na medida em que umas não se atingem sem as outras. Elas não são separáveis. Dizer que as condições objectivas estão reunidas mas que faltam as condições subjectivas não faz qualquer sentido de um ponto de vista materialista: se a situação objectiva é favorável, as forças morais, de vontade e de consciência, não faltarão ao encontro. Nada é mais falso do que interpretar o determinismo histórico revolucionário de Marx como se ele significasse que bastaria descansarmos sobre forças exteriores ao homem para que a História se cumprisse. É justamente porque um tal determinismo opera que milhões de energias, até aqui apagadas, se despertam, entram em acção, são capazes de iniciativa e de clarividência, projectadas, empurradas para diante pela situação histórica. Mas Ângelo Novo permanece céptico. Ele procura reintroduzir uma certa dose de idealismo na composição das forças que fazem a História, vendo nesta uma “incontornável dialéctica entre o voluntarismo e o determinismo económico estrito”. É um velho debate que atravessou todos os movimentos revolucionários do passado, na medida em que estes, tendo-se sempre encontrado perante situações imaturas, procuraram compensar esse défice por meio de expedientes “ideológicos” ou “tácticos”. Possa o meu simpático contraditor compreender que estão em vias de se completar as condições que permitirão tornar impossível todo o regresso atrás: hic Rhodus, hic salta!
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Vila Nova de Gaia, 3 de Junho de 1996
Caro camarada:
(...)
Sobre a teoria do imperialismo, você afirma que ela “se tornou obsoleta para dar conta do curso histórico do capitalismo moderno”. Você tem evidentemente razão (embora esta seja infelizmente uma evidência que ainda está longe de se ter imposto por completo no campo marxista) quando diz que o imperialismo não é nenhum “estádio supremo” do capitalismo. Pelo contrário, ele serviu à sua fase “de acumulação primitiva e arranque industrial”. Estou de tal modo de acordo que não vejo nenhuma solução de continuidade entre a expansão europeia (desde começos do séc. XVI) e o imperialismo dito clássico (a partir de 1880). O imperialismo está aí desde que há capitalismo que é, como que geneticamente, o primeiro modo de produção de âmbito e escopo mundial.
Já não estou de todo de acordo quando diz que não há nenhuma especificidade do fenómeno imperialista no capitalismo, em confronto com anteriores experiências imperiais. A meu ver, o capitalismo define-se nuclearmente como um fenómeno político e económico visando drenar valor desde vastos domínios territoriais para um centro acumulador dominante. Isso passa-se, evidentemente, desde os egípcios e os sumérios, em formações sociais vivendo sob a dominação de diversos modos de produção pré-capitalistas (tributário, asiático, esclavagista, etc.). Simplesmente, o capitalismo renovou com esta prática, submetendo-a à sua própria lógica de extracção e acumulação de mais-valia. E certamente que não acabou de o fazer. Dizer que, com a descolonização, deixou de haver imperialismo, é realmente um pouco surpreendente da sua parte. Temos a troca desigual, a “dívida”, o F.M.I., a Banca Mundial, a O.M.C., o Conselho de Segurança da O.N.U., o G7. Temos - acentuando-se cada vez mais - uma tutela política e militar permanente dos centros imperialistas sobre os povos de todo o globo. Isso não são certamente apenas “as leis económicas tal como Marx as analisou”. Em todo o caso, as leis económicas (como as outras), se quiserem ser efectivas, não poderão dispensar nunca a espada - ou as “bombas inteligentes”. É evidente que não há nenhum capitalismo puramente “económico”. Isso é uma mitologia ideológica, hoje muito na moda é certo, com toda a explosão eufórica de neo-liberalismo legitimista dos comentadores burgueses. A “troca mercantil de equivalentes” não exclui a pilhagem, ela é a forma contemporânea da pilhagem imperialista.
A teoria do imperialismo não é apenas Lenine (o seu livrinho é, como se sabe, uma obra de circunstância, escassamente original e com um objectivo polémico muito preciso) e seus amigos. Houve, já no pós-guerra, importantes desenvolvimentos e contributos: Harry Magdoff, a escola da “teoria da dependência”, Samir Amin, Arghiri Emmanuel e muitos outros. Por outro lado, esta problemática não está de modo nenhum ancorada e comprometida pela questão do “estádio supremo” e pela análise leninista da guerra, como você insistentemente pretende. Há três grandes centros acumuladores no capitalismo contemporâneo. Todos os três mantêm relações de dominação e de exploração no “estrangeiro”. Todos os três rivalizam e se afrontam entre si, na prossecução dos seus próprios interesses. O Estado (não necessariamente sempre o exército - há também a política económica, industrial, monetária, cambial, a “cooperação”, etc.) desempenha um papel essencial ao serviço dos interesses estratégicos mundiais da sua própria burguesia imperialista e contra os das suas rivais. Se você nega tudo isto (há aqueles que pensam que, com a “mundialização do capital”, já não há centros rivais de acumulação capitalista) então é verdade, você não precisa de nenhuma teoria do imperialismo.
Já disse o que pensava quanto ao “estádio supremo” e ao estertor iminente do capitalismo profetizados no dealber deste século. Quanto à sua interpretação da “guerra dos 30 anos” e do fascismo, tenho que dizer-lhe que também aí (é certo que não li ainda o livro de Arno Meyer) vejo muitos problemas por resolver. Vocé diz que “é totalmente desprovido de sentido pôr a questão de saber se hoje poderá ressurgir o fascismo”. Então Le Pen e os outros, será apenas bluff? Você pensa que o capital, sob pressão de uma agudização das lutas de classes, seria agora “historicamente” incapaz de se desembaraçar das regras do jogo “democrático” e de recorrer a um regime autoritário e policial? Se assim é, estou naturalmente em frontal desacordo consigo. Se não é assim que pensa, a nossa divergência terá provavelmente apenas a ver com uma questão terminológica sobre o que é ou não fascismo.
Prossigamos. O fascismo (stricto sensu, por assim dizer) como fenómeno histórico dos anos 20-30 seria ainda assim apenas um movimento arcaico e reaccionário? (1) Não haveria aí também - ou sobretudo - uma radicalização da ditadura de classe burguesa (sustentada é certo, nessa circunstância histórica particular, por elementos reaccionários) e uma crispação política militarista e policiária devida à agudização do conflito inter-imperialista? Se você vê a guerra e o fascismo como simples dores de parto da passagem à “dominação real”, é difícil de identificar as linhas de afrontamento. Onde estavam então os reaccionários e onde a burguesia progressista? Como se afrontaram eles ao longo desta tal guerra única? Isso deveria ter sido clarificado mais precisamente. Por isso eu digo que a explicação não me parece ainda amadurecida.
Outra questão: Você não pretende ainda assim dizer que as guerras inter-imperialistas são uma coisa do passado? Nesse caso, as suas teses estariam muito próximas do lugar comum hoje muito mediatizado de que “jamais duas «democracias» fizeram a guerra uma à outra”, etc.. Temos presentemente uma hegemonia militar indisputada dos Estados Unidos. É por isso que, a meu ver, não temos de momento a ameaça iminente de uma guerra. Mas nada nos diz que, amanhã, os três polos actuais de acumulação capitalista não conduzirão de novo a sua rivalidade económica até ao conflito militar, que é aliás o seu desenlace lógico. É por esse modo apenas que se criará enfim um novo equilíbrio, porventura com mudança de polo hegemónico. Perante a guerra, teremos então necessidade da “velha” teoria do imperialismo (renovada, certamente). É por isso que eu acho que faríamos mal em a atirar às urtigas sem ter qualquer coisa de bem sólido e provado no seu lugar.
É evidente que você não disse que a revolução é já para amanhã. Creio, porém, que o seu diagnóstico de “fim de ciclo histórico” do capitalismo é da mesma ordem do “estádio supremo” de outrora. Coisa diferente será dizer que a revolução socialista está em marcha quando não está nem poderia estar. Isso, os revolucionários dos anos 10-20 fizeram-no também. Equivocaram-se duas vezes: no diagnóstico geral e, consequentemente, na sua luta política concreta. Em essência, você diz que o seu diagnóstico era precoce. Hoje, sim, entramos na fase final do capitalismo. Baixa da taxa de lucro, regressão social - um beco sem saída. É verdade, não sabemos o que isto vai ainda durar. Mas o capitalismo não poderá de forma alguma desembaraçar-se desta crise. É efectivamente um risco dizer isto, mas eu não lho “reprovo”. Bem pelo contrário.
Quanto a mim, tendo a ver o materialismo histórico como um “processo sem sujeito nem fim” (Althusser). Nós sabemos que é no eixo forças produtivas/relações de produção que as sociedades humanas se transformam a elas próprias, por intervenção da luta de classes. Temos pois uma teoria da História. Ela no-la torna inteligível. Ela integra a desordem do nosso presente num percurso conhecido e compreensível. Podemos assim conhecer o “campo” e as forças em presença. Podemos também vislumbrar pontos de saída para as contradições presentes. Mas uma teoria não é evidentemente uma bola de cristal. Não nos dá certezas ontológicas sobre o que o futuro nos trará. Há aí um limite epistemológico evidente. Se o não respeitarmos, passamos directamente da ciência para o profetismo e o videntismo. É certo que Marx pode ser lido como um determinista. Isso deve-se, a meu ver, a confundirem-se nele muito facilmente o cientista e o político. Do núcleo científico da sua obra, acho ser nosso dever retirar toda a carga determinista que o seu texto, por vezes, efectivamente suporta. Eu penso evidentemente que as sociedades de classes tendem para o comunismo. Mas nós não sabemos sequer se o capitalismo vai ser a última daquelas.
Quando falo da “dialéctica” entre o voluntarismo e o determinismo económico, evidentemente não tomo a expressão no seu sentido filosófico mas sim etimológico. Na história do comunismo e do movimento operário, houve como que um diálogo permanente entre os deterministas (digamos, Kautski) e os voluntaristas (Che Guevara, para dar um exemplo extremo). Dosearam-se variavelmente estas duas componentes, mas não se conseguiu realmente superar nunca a sua antinomia. Vejo-o a você mais do lado dos primeiros. Embora tivesse havido aqui um equívoco, é verdade porém que o voluntarismo está frequentemente (e não por acaso) do lado dos “hegelianos”. Talvez esta confusão tenha ainda assim algum sentido. A dialéctica na História é, certamente, um processo inteiramente materialista. Mas é preciso dizer que nesta “matéria” vai incluída a angústia, a capacidade de iniciativa e de organização, os medos, a miséria, a audácia, os conhecimentos e a coragem de milhões de homens e mulheres concretos, dolorosamente concretos. Isto não é uma matéria como qualquer outra. É matéria de uma ordem de complexidade totalmente àparte do mundo das reacções químicas elementares com as suas leis inelutáveis. E quando sabemos hoje que, mesmo na micro-física, o paradigma científico dominante é há muito já indeterminista... Pela minha parte, direi que, reunindo-se um conjunto importante de condições históricas favoráveis à revolução proletárias (e você garante-me que isso se fará brevemente), o mote latino apropriado será: alea jacta est!
Vai longa esta carta e não falei ainda senão das nossas divergências. É preciso contudo dizer que as nossas convergências são bem mais importantes e decisivas. Já disse que o seu livro me deu uma grande alegria. Temos perante nós um novo ciclo da revolução proletária e é absolutamente necessário verificar e calibrar de novo as nossas armas. O seu ensaio é um dos mais notáveis esforços que eu conheço nessa via, que é a justa. A sua “ambição” não é vã, é parte e parcela da nossa própria ambição de revolucionários - transformar o mundo.
Nota:
(1) Em Portugal, justamente, uma maioria dos historiadores dizem-nos agora que não houve aqui nunca realmente fascismo stricto sensu. O regime de Salazar era antes ...uma simples ditadura reaccionária, paternalista e rural. Quanto ao fascismo verdadeiro (maxime, o alemão e o italiano) ele seria um fenómeno de massas, urbano e modernista. Imagino que teria algumas dificuldades em expôr-lhes o seu ponto de vista.
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Paris, 13 de Junho de 1996
Caro camarada:
Na sua carta de 3 de Junho, você volta à carga a propósito do imperialismo hoje. A sua posição parece-me muito terceiro-mundista: apesar da descolonização, nada teria mudado. Portanto, a Argélia de hoje, para tomar um exemplo, será a mesma do tempo da “Argélia francesa”... Que os países ditos do terceiro-mundo são dominados economicamente pelos grandes centros capitalistas é uma verdade, mas isso não tem nada a ver com o mauzão F.M.I. ou com a mázinha Banca Mundial. Isso decorre do seu atraso em termos de desenvolvimento: enquanto há cerca de dois séculos já os países da Europa ocidental e da América do Norte começaram a sua revolução industrial, só há uns vinte anos é que os países do Sul começaram a sua. Apesar disso, constato que obtiveram já resultados nada desprezíveis. Assim na China do Sul, em todo o sudeste asiático, e também na América do Sul e central, com o México. Isso teria sido impensável na época do imperialismo. É um efeito da mundialização do capital que atinge assim o seu verdadeiro “estádio supremo”. É claro que há vários centros rivais de acumulação no seio desta mundialização. Descortino desde já dois: a Europa e a América do Norte (+ o México), onde as taxas de crescimento do P.I.B. atingem penosamente os 2%. Há ainda um terceiro, com o sudeste asiático + a China do Sul, onde as taxas de crescimento são, aí, de 10% em média! Nada mau, para países sob tutela “imperialista”... Teríamos de acreditar que a tal “troca desigual” joga a seu favor! Que pensará disto o terceiro-mundista Samir Amin, admirador da China maoista e teórico da “desconexão”? Hoje em dia, o que conta para um país capitalista, não importa qual, é a sua capacidade para enfrentar os desafios da “mundialização”: o seu grau de competitividade económica. E nesta competição feroz, os países do Ocidente não estão para sempre seguros de ser os vencedores: se eles não se adaptam, correm o risco de se desindustrializar e de se terceiro-mundizar. É já em parte o que ocorre na ex-U.R.S.S., e mesmo nos E.U.A. e Europa ocidental, onde há regiões economicamente sinistradas (o Norte de França, a Valónia na Bélgica). O que rege agora o mundo não são mais os Estados, mas o Mercado, com as suas firmas multinacionais e transnacionais, que investem em função dos seus interesses económicos exclusivos, sem qualquer consideração pelas fronteiras. Dito de outro modo, o capital vai para onde a taxa de lucro é suficientemente rentável, não hesitando em deslocalizar a produção.
Você não compreendeu que temos que tratar o fascismo como um fenómeno histórico. É por isso que, tal como os “media”, considera Le Pen um fascista, enquante este não é mais que um puro partidário do liberalismo económico, estilo Reagan (de que ele se reclama), e da “revolução conservadora” americana (defesa dos “valores morais” burgueses que, neste fim de ciclo do capitalismo, estão efectivamente em deliquescência). Você faz uma bela confusão: assimila o fascismo a um regime autoritário e policial. Nesse sentido Napoleão I e III, o regime versalhês após a comuna de Paris, Bismarck, Estaline, eram todos “fascismo”... É claro que, face a uma luta de classes revolucionária, as democracias burguesas fazem-se mais “musculadas”. Vi-mo-lo em 1848, com a repressão feroz dos insurrectos de Junho, feita pelos republicanos de Cavaignac; em 1871 com o massacre dos comuneiros operado pelos burgueses de Thiers que instaurariam de seguida a III República; em 1919, com o assassinato dos spartaquistas orquestrado pelos partidários da república de Weimar; em 1934 nas Astúrias onde a jovem república espanhola liquida a insurreição dos mineiros. O que é que tudo isto tem a ver com o “fascismo”? Só os fascistas seriam capazes de recorrer à ditadura e à violência? Uma treta! Se a democracia burguesa se sente ameaçada ela é perfeitamente capaz de se defender sem para isso ter de recorrer ao fascismo. Ela porá em campo um regime de excepção, fará reinar a lei marcial, e uma vez a Ordem reestabelecida, quer dizer, os revolucionários liquidados, ela retornará ao jogo normal das suas instituições. Quando o fascismo histórico surgiu, nos anos 30, não havia nenhuma ameaça séria de revolução proletária, tendo esta abortado completamente há dez anos atrás. Mesmo o golpe de Estado franquista de 1936 não é uma resposta desse tipo: a classe operária espanhola, inclusive a sua componente anarquista, não optou pela revolução mas sim pela “frente popular”. O franquismo é uma reacção à república burguesa de 1931, como o hitlerismo é uma reacção à república de Weimar de 1919, como o fascismo italiano é uma reacção às “ideias de 1789”.
Após isto, perguntáis-me: “Onde estavam os reaccionários e onde as burguesias progressistas?” Se você não faz qualquer distinção entre a democracia burguesa americana e um campo de concentração hitleriano, entre a civilização da Coca-Cola e a da exterminação dos judeus ou do projecto de escravização de todos os eslavos, então que poderei eu dizer-vos? Reenvio-vos para o meu livro onde, a páginas 145-146, eu cito P. Souyri.
Você escreve: “não pretende ainda assim dizer que as guerras inter-imperialistas são uma coisa do passado?” Caro camarada, você esquece qual é a perspectiva que eu desenho no meu livro: não a de uma guerra futura, mas a da revolução, não já “para amanhã”, é verdade, mas num futuro que não será talvez assim tão afastado, mesmo que para isso tenhamos de esperar ainda duas ou três décadas. Senão para que serveria este livro? Não o teria escrito. Pela minha parte, estimei que1995 não era 1938 e que a História iria produzir algo de novo. Você mesmo, aliás, parece inclinar-se para esse lado quando, no final da sua carta, escreve: “temos perante nós um novo ciclo da revolução proletária e é absolutamente necessário verificar e calibrar de novo as nossas armas”. Eis o que me parece colidir com o seu, digamos cepticismo, emergente aqui e ali no seu discurso, como por exemplo quando escreve: “nós não sabemos mesmo se o capitalismo será a última sociedade de classes”. Tive a impressão de que você está atacado por uma espécie de desencorajamento, aliás muito espalhado na época actual. Após o optimismo desbordante, completamente irrealista, de 1968 (para vós portugueses, de 1974), sucede-se hoje um estado de desilusão aguda, igualmente irrealista. No que me diz respeito, tenho bem consciência de remar contra a maré. Mas pessoalmente, não cederei ao espírito do tempo. Os elementos que, após 1968, julgavam que a revolução estava ao alcance dos dedos soçobraram por completo. Aqueles que sobreviveram passam o tempo a dizer que não vêm qualquer saída. Isso serve de alibi à sua renúncia. O meu livro foi uma primeira tentativa de romper com este estado de deterioração ideológica em que mais nenhuma perspectiva política e histórica emerge. Contra tudo e todos, persistirei na via que me tracei: considerar que a análise marxista é ainda mais válida hoje que no passado, só ela permitindo manter uma visão sobre o futuro. Esta “ambição”, penso bem prossegui-la, tendo bem consciência de que estou ainda longe de lhe estar à altura.
Saudações fraternais,
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Vila Nova de Gaia, 3 de Julho de 1996
Caro camarada:
(...)
Você julga-me “terceiro-mundista”. Embora não o aceite de todo (haveria aí muito que discutir), também não o acho assim um epíteto tão infamante como isso. Eu nasci em Moçambique e conheço razoavelmente bem as devastações que provoca a “mundialização”. Pelo contrário, não conheço nenhum traço de verdadeira “revolução industrial” em África. Será preciso esperá-la ainda? Você diz-me que as relações de dominação económica internacionais decorrem apenas do “atraso no desenvolvimento” dos países do Sul. É crer demasiado, receio-o, nos caracteres universalistas do capitalismo. A sua visão parece-me próxima da teoria dos estádios económicos de Rostow. Seria apenas necessário aguardar pelo inevitável take-off dos países retardatários e em breve viveremos num mundo sem desequilíbrios regionais. Simplesmente, no “capitalismo real”, as relações de dominação que os países “atrasados” sofrem (a “dívida”, a troca desigual, a “especialização” na agricultura e na extracção de matérias-primas) são um travão ao desenvolvimento e mecanismos eficazes de reprodução dessa mesma dominação e exploração. É isso o imperialismo.
Você diz-me que “o que rege agora o mundo não são mais os Estados, mas o Mercado, com as suas firmas multinacionais e transnacionais, que investem em função dos seus interesses económicos exclusivos, sem qualquer consideração pelas fronteiras”. Penso que faríamos mal em desvalorizar o papel do Estado, ao gosto do último grito das modas intelectuais. O fenómeno de aceleração da “mundialização” é real. Mas isso não se acompanha de nenhum de qualquer declínio do Estado. Haverá, quanto muito, fenómenos de transnacionalização de certas parcelas, aliás muito restritas, do poder estatal, que assim se vêm transferidas para organismos regionais ou mundiais. O capital não poderia viver um segundo sem o poder político e o aparato coercivo burguês. Isso aí, creia-me bem, as multinacionais sabem-no de sobejo. Em tempo de borrasca, elas lembrar-se-ão muito rapidamente da sua bandeira nacional. Em tempo de paz, elas beneficiam também (e influenciam as suas decisões) da “política económica” e cambial, da diplomacia, do poder militar, etc. do seu Estado, para assim melhor “competir” no tablado mundial. Há multinacionais (nomeadamente britânicas) que já pouca ou nenhuma influência têm na vida económica e social do seu país de origem, continuando porém a subornar e a receber avultados favores da sua classe política. Tudo em nome das tais competitividade e mundialização.
Sobre o fascismo, estarei de acordo consigo em remetê-lo ao seu contexto histórico dos anos 30-40 (acho contudo que você se equivoca gravemente sobre Le Pen). Simplesmente, lá está, eu vejo o fascismo nesse sentido estrito como uma simples sub-espécie epocal dos regimes burgueses musculados. Por isso eu admitia que a questão fosse simplesmente terminológica. Não sou historiador, mas terei uma grande dificuldade em admitir absolver a grande burguesia da subida e tomada do poder por parte do fascismo histórico, como me parece que você faz (como o faz aliás o último Hobsbawn, por exemplo).
É claro que não confundo (nem julgo que se equivalham) o nazismo e a civilização da Coca-Cola. Mas você esquece-se que a sua “guerra de trinta anos” começou muito atrás, em 1914. Tínhamos então os regimes aristocráticos (mas com burguesias poderosas e 100% cooperantes, instituições “democráticas”, etc.) da Europa central de um lado; a França e a Grã-Bretanha, moderadamente “democráticos”, aliados à Rússia czarista, do outro. Os Estados Unidos chegaram atrasados à festa. É um pouco difícil discernir aí claramente um conflito de classes como causa primeira e principal do conflito. Em todo o caso, você não o faz de forma convincente no seu livro. Se tudo isto não foi senão um conflito de classes, ao menos a Rússia (a tal “reserva da reacção europeia”) parece estar do lado errado. Se fosse esse o caso, esperar-se-ia antes uma série de revoluções e/ou de guerras civis (como em 1948) e não guerras clássicas entre blocos nacionais incindidos. As burguesias germânicas não aspirariam também elas à passagem à “dominação real”? Então porque se solidarizaram elas tão pronta, empenhada e até euforicamente com o kaiser e o imperador? Iludiram-se sobre o que estava em jogo? Estranha cegueira! Como você bem sabe, mesmo a social-democracia e a esmagadora maioria do movimento operário apoiaram aí convictamente o esforço de guerra. Kautski cometeu mesmo a impudência de dizer: “Eis a guerra contra o despotismo russo à qual aspirava Marx!” E ele tinha então fortes e bons argumentos para sustentar que o “progressismo” estava do lado germânico. O capitalismo alemão era, já então, mais dinâmico e moderno que o francês e britânico, países que, como você ainda recentemente afirmou, estavam a atrasar-se por serem sobretudo rendeiros de grandes impérios...
Não digo que a sua interpretação seja falsa. Ela incluirá mesmo provavelmente elementos judiciosos e úteis. Mas considero-a ainda tacteante e não provada. Para mim, as guerras mundiais foram sobretudo guerras inter-imperialistas. E isso não me impede em nada de diferenciar entre o fascismo e a democracia burguesa na guerra dos anos 30-40 (dita segunda). Quanto à sua interpretação, dessa é que me parece estar ainda por retirar a sua consequência lógica: a de que Lenine, Rosa e toda a esquerda de Zimmerwald se equivocaram. A posição correcta dos socialistas face à guerra de 14-18 teria sido... o apoio à entente franco-britânica. Estará você preparado para sustentar isso?
Você escusa-se a debater se o capitalismo está ou não ainda vocacionado para a guerra, sob pretexto de que... em breve já (vinte, trinta anos no máximo) teremos a revolução. Mas, caro camarada, não se trata da minha parte de fazer futurologia ociosa. Não tenho qualquer prazer em fazer de Cassandra. Trata-se de bem conhecer o sistema como ele é, a fim de melhor o combater. Os centros capitalistas estão em equilíbrio cooperativo permanente (como penso deduzir das suas ideias)? Ou, pelo contrário, as suas rivalidades agudizam-se e desembocarão naturalmente na guerra, como já o vimos no passado. E aqui voltamos à questão da interpretação das guerras do século XX. Desde que o capitalismo aí está, tivemos, ou uma potência hegemónica indisputada (a Grã-Bretanha e, depois, os Estados Unidos) ou guerras. A partir do momento em que a hegemonia yankee comece a ser disputada, creio que regressaremos à instabilidade política e ao afrontamento mundial. Não me vai certamente dizer que isso é indiferente para a revolução socialista?
Eu não sou “céptico”. É você que confunde a esperança com uma certeza ontológica, ou mesmo uma renovada fé cientista nos amanhãs que cantam. Nós, os comunistas, lutamos e esperamos, mas na verdade não sabemos. E é porque não sabemos que nos batemos com um arreganho redobrado. É isso que faz a nossa grandeza. Para que teria você escrito o seu livro, se a revolução é já um facto adquirido para daqui a 20-30 anos? Pela vâ glória pessoal de ter sido o primeiro a o ter visto? Não, digo-lho eu. Você escreveu-o como um instrumento da luta de classes, como uma ferramenta ao dispôr da revolução. E uma luta, por definição, tem um resultado incerto.
Você faz mal em confundir uma posição filosófica não-determinista (que o marxismo suporta bem, a meu ver) com “desencorajamento” anímico, ou mesmo descrença. Será que você também acha (como os estalinistas) que as massas são incapazes de se bater sem uma fé inculcada pelos ideólogos de serviço. Na verdade, estou um pouco confundido com o seu “conservadorismo” nesta matéria. Você não pode ignorar que um dos mais pesados legados do estalinismo é justamente esta fé irracional que abusou da incultura e impreparação das massas para lhes impôr regimes oportunistas, sobreexploração, o “culto da personalidade”, etc., etc..
(...) Com as minhas calorosas saudações,
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Troca de cartas publicada na revista 'Política Operária' nº 56, Setembro-Outubro de 1996, em tradução de Ângelo Novo sobre o original em francês.