Foto Clarice Lispector

É um nome latino, né, eu perguntei para o meu pai desde quando havia Lispector na Ucrânia. Ele disse que há gerações e gerações anteriores. Eu suponho que o nome foi rolando, rolando, perdendo algumas sílabas e se transformando nessa coisa que parece "LIS NO PEITO", em latim: flor de lis.

CLARICE LISPECTOR

Um Enigma


"Tenho várias caras. Uma é quase bonita, outra é quase feia. Sou um o quê? Um quase tudo".

Um Objeto Não Identificado Das Letras Brasileiras

"... eu só escrevo quando eu quero, eu sou uma amadora e faço questão de continuar a ser amadora. Profissional é  aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever, ou então em relação ao outro. Agora, eu faço questão de não ser profissional, para manter minha liberdade."
foto
Clarice nasce em Tchelchenik, na Ucrânia, em 1920. Chega ao Brasil com os pais e as duas irmãs aos dois meses de idade, instalando-se em Recife. A infância é envolta em sérias dificuldades financeiras. A mãe morre quando ela conta 9 anos de idade. A família então se transfere para o Rio de Janeiro, onde Clarice começa a trabalhar como professora particular de português. A relação professor/aluno seria um dos temas preferidos e recorrentes em toda a sua obra - desde o primeiro romance: Perto do Coração Selvagem. Ela estuda Direito, por contingência. Em seguida, começa a trabalhar na Agência Nacional, como redatora. No jornalismo, conhece e se aproxima de escritores e jornalistas como Antônio Callado, Hélio Pelegrino, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Alberto Dines e Rubem Braga. Os passos seguintes são o jornal A Noite e o início do livro Perto do Coração Selvagem - segundo ela, um processo cercado pela angústia. O romance a persegue. As idéias surgem a qualquer hora, em qualquer lugar. Nasce aí uma das características do seu método de escrita - anotar as idéias a qualquer hora, em qualquer pedaço de papel.
"E como nasci? Por um quase. Podia ser outra. Podia ser um homem. Felizmente nasci mulher. E vaidosa. Prefiro que saia um bom retrato meu no jornal do que os elogios."
Marcada pela solidão. Marcada pelo grande amor de sua vida. Marcada pela luta constante contra a quase miséria material. Marcada pelas mãos maceradas pelo fogo, em defesa da vida de um filho, e pela sombra da insanidade rondando a vida do outro."
Tristão de Athayde.
"Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada."
"Antes dos sete anos eu já fabulava e já inventava histórias. Por exemplo, inventei uma história que não acabava nunca, é muito complicado explicar esta história. Quando eu comecei a ler e a escrever, eu comecei a escrever também pequenas histórias."


"Eu misturei tudo, eu lia livro, romance para mocinha, livro cor de rosa, misturado com Dostoievski, eu escolhia os livros pelos títulos e não por autores, porque eu não tinha conhecimento...fui ler aos 13 anos Herman Hesse, tomei um choque: O Lobo da Estepe. Aí comecei a escrever um conto que não acabava nunca mais. Terminei rasgando e jogando fora."


"Em uma outra vida que tive, aos 15 anos, entrei numa livraria, que me pareceu o mundo que gostaria de morar. De repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu! Só depois vim a saber que a autora era considerada um dos melhores escritores de sua época: Katherine Mansfield."
Em 43, conhece e casa-se com Maury Gurgel Valente, futuro diplomata. O casamento dura 15 anos. Dele nascem Pedro e Paulo. No ano seguinte, ela publica Perto do Coração Selvagem. Em plena Segunda Guerra Mundial, o casal vai para a Europa.


Perto do Coração Selvagem desnorteia a crítica literaria. Há os que pretendem não compreender o romance, os que procuram influências - de Virgínia Wolf e James Joyce, quando ela nem os tinha lido - e ainda os que invocam o temperamento  feminino.  Influências? 

frontispício

Perto do Coração Selvagem recebe o prêmio da Fundação Graça Aranha. Nas palavras de Lauro Escorel, as características do romance revelam uma "personalidade de romancista verdadeiramente excepcional, pelos seus recursos técnicos e pela força da sua natureza inteligente e sensível".
Já no primeiro livro, identifica-se o estilo muito pessoal da escritora. Nas páginas, Clarice explora pela primeira vez a solidão e a incomunicabilidade humana, através de uma prosa inquieta, próxima da poesia em determinados momentos.
"Eu conhecia melhor um árabe com véu no rosto quando estava no Rio. Todo esse mês de viagem nada tenho feito, nem lido, nem nada. Sou inteiramente Clarice Gurgel Valente. "





Foto Clarice em Nápoles





Rumo à Europa, os Gurgel Valente passam por Natal. De lá para Nápoles. Já na saída do Brasil, Clarice mostra-se dividida entre a obrigação de acompanhar o marido e ter de deixar a família e os amigos. Quando chega à Itália, depois de um mês de viagem, escreve: "Na verdade não sei escrever cartas sobre viagens, na verdade nem mesmo sei viajar".

Clarice permanece em Nápoles até 1946. Durante a II Guerra, presta ajuda num hospital de soldados brasileiros. Uma dúvida: um serviço prestado como cidadã brasileira ou como mulher de um diplomata brasileiro? Como escritora, ela sente a presença do sucesso. Por telegrama, sabe do prêmio recebido pelo romance deixado no Brasil. Mantém uma correspondência constante com os amigos que deixara para trás. Em Nápoles, em 44, conclui O Lustre, livro iniciado no Brasil e que seria publicado em 1946.
Virgínia, a personagem principal de O Lustre, tem a história narrada desde a infância e também aparece sob o signo do mal, tal como Joana, personagem do primeiro romance. Em O Lustre, Virgínia mantém  um relacionamento incestuoso com o irmão, Daniel, com quem faz reuniões secretas em que experimentam verdades, na condição de iniciados especiais.
Nessa época, Clarice Lispector se corresponde com Lúcio Cardoso, que não gosta do título do livro: acha-o "mansfieldiano" e um pouco pobre para pessoa tão rica como Clarice.
"Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato... Ou toca, ou não toca".
Resposta a Lúcio Cardoso:
Me entristeceu um pouco você não gostar do título "O Lustre". Exatamente pelo que você não gostou, pela pobreza dele, é que eu gosto. Nunca consegui mesmo convencer você de que eu sou pobre... Infelizmente, quanto mais pobre, com mais enfeites me enfeito. No dia em que eu conseguir uma forma tão pobre como eu o sou por dentro, em vez de carta, você receberá uma caixinha cheia de pó de Clarice.
Eu escrevo simples. Eu não enfeito.
Manuel Bandeira, que publicara Poesias Completas e Poemas Traduzidos e enviara os exemplares para Clarice na Europa, pede, em 1945, alguns de seus poemas para serem publicados.
Manuscrito
"Quer me mandar algumas coisas? Você é poeta, Clarice querida. Até hoje tenho remorso do que disse a respeito dos versos que você me mostrou. Você interpretou mal minhas palavras. Você tem peixinhos nos olhos, você é bissexta. Faça versos, Clarice, e se lembre de mim. Você nunca é falante, barulhenta. O que você escreve nunca dói nem fere os ouvidos. Você sabe escrever baixo. E sua assinatura, Clarice, é você inteirinha: Clara...Clarinha...Clarice."
Manuel Bandeira
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"Eu estava em Roma quando um amigo meu disse que o De Chirico na certa gostaria de me pintar. Perguntou a ele. Aí ele disse que só me vendo. Me viu e disse: eu vou pintar o seu ... o seu retrato. Em 3 sessões ele fez. E disse assim: eu podia continuar pintando interminavelmente esse retrato, mas eu tenho medo de estragar tudo. Eu estava posando para De Chirico quando o jornaleiro gritou: 'È finita la guerra'. Eu também dei um grito, o pintor parou, comentou-se a falta estranha de alegria da gente e continuou-se. Aposto que, no Brasil, a alegria foi maior."
No fim da guerra, Clarice é retratada por De Chirico. Em maio de 45, ela manda uma carta às irmãs Elisa e Tânia, contando o encontro com o artista e falando sobre o final da guerra na Europa.

reproduçcaão
"O trabalho está desorganizado, muito ruim, muito confuso. Material eu tenho e em abundâcia. O que me falta é o tino da composição, o verdadeiro trabalho. Minha tendência seria a de pensar apenas e não trabalhar nada. Mas isso não é possível. O trabalho de compor é o pior. Eu mesma vivo me levantando e caindo de novo e me levantando. Não sei qual é o bem disso, sei que é essa forma confusa de vida que vivo. Uma pessoa que quisesse tomar minha direção seria bem vinda...Eu nunca sei se quero descansar porque estou realmente cansada, ou se quero descansar para desistir."
Quando O Lustre é lançado, Clarice está no Brasil, onde passa um mês. De volta à Europa, transfere-se para a Suiça, "um cemitério de sensações", segundo a escritora. Durante três anos, passa por dificuldades em relação à escrita e à vida pessoal. Em 46, tenta iniciar A Cidade Sitiada, livro que sairia em 49. Vendo-se impossibilitada de escrever, coleciona frases de Kafka, referentes a preguiça, impaciência e inspiração.

Para Clarice, a vida em Berna é de miséria existencial. A Cidade Sitiada acaba sendo escrito na Suíça. Na crônica "Lembrança de uma fonte, de uma cidade", Clarice afirma que, em Berna, sua vida foi salva por causa do nascimento do filho Pedro e por ter escrito um dos livros "menos gostados". Terminado o último capítulo, dá à luz. Nasce então um complemento ao método de trabalho. Ela escreve com a máquina no colo, para cuidar do filho. 
Foto Clarice dec 60
O período na Suíça caracteriza-se pela saudade do Brasil, dos amigos e das irmãs. A correspondência que recebe não lhe parece suficiente. Até 52, escreveria contos, gênero em que Clarice Lispector talvez não tenha sido alcançada na literatura brasileira. Alguns Contos foi publicado em 52, quando ela já tinha deixado Berna, passado seis meses na Inglaterra e partido para os Estados Unidos, acompanhando o marido.

"Ela se deixava conduzir por uma espécie de compulsiva intuição. Era o seu tanto adivinha. Ninguém passa por ela impune. Ela liga e religa o mistério da vida e o religioso silêncio da morte. Clarice é uma aventura espiritual." 
Otto Lara Resende
" Tenho visto pessoas demais, falado demais, dito mentiras, tenho sido muito gentil. Quem está se divertindo é uma mulher que eu detesto, uma mulher que não é a irmã de vocês. É qualquer uma."
Em carta às irmãs, em janeiro de 47, de Paris, Clarice expõe seu estado de espírito...
1947 Berna - Suiça "Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro...há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma em boi. Assim fiquei eu...Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que imagina que é ruim em você - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse seu único meio de viver. Juro por Deus que, se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia ia ser punida e iria para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não é ser punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade da alma". Clarice.


Em 95, o escritor Caio Fernando Abreu, então colunista do jornal O Estado de São Paulo, publicou uma carta que teria sido escrita por Clarice Lispector a uma amiga brasileira. Ele comenta, no artigo, que não há nada que comprove sua autenticidade, a não ser o estilo-não estilo de escrita de Clarice Lispector. Ele dizia: "A beleza e o conteúdo de humanidade que a carta contém valem a pena a publicação..."


adorno

Retrato Carlos Scliar -72


adorno




"Quando eu me comunico com criança é fácil porque sou muito maternal. Quando me comunico com adulto, na verdade estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma, daí é difícil... O adulto é triste e solitário. A criança tem a fantasia muito solta."


" Quanto a meus filhos, o nascimento deles não foi casual. Eu quis ser mãe. Os dois meninos estão aqui, ao meu lado. Eu me orgulho deles, eu me renovo neles, eu acompanho seus sofrimentos e angústias. Sei que um dia abrirão as asas para o vôo necessário, e eu ficarei sozinha. Quando eu ficar sozinha, estarei seguindo o destino de todas as mulheres."
Em 1950, na Inglaterra, Clarice inicia o esboço do que viria a ser A Maçã no Escuro, livro publicado em 61. Antes de se fixar em Washington ela passa pelo Brasil. Trabalha novamente em jornais, entre maio e setembro de 52, assinando a página "Entre Mulheres", no jornal O Comício, no Rio, sob o pseudônimo de Tereza Quadros. Em setembro vai para os Estados Unidos, grávida. Durante os oito anos de permanência no país, vem ao Brasil várias vezes. Em fevereiro de 53, nasce Paulo. Ela continua a escrever A Maçã no Escuro, em meio a conflitos domésticos e interiores. Mãe, Clarice Lispector divide seu tempo entre os filhos, A Maçã no Escuro, os contos de Laços de Família e a literatura infantil. O primeiro livro para crianças seria O Mistério do Coelhinho Pensante , uma exigência do filho Paulo. A obra ganharia o prêmio Calunga, em 67, da Campanha Nacional da Criança. Ela ainda escreveria três livros infantis: A Mulher que Matou os Peixes, A Vida Íntima de Laura e Quase de Verdade. Nos Estados Unidos, Clarice Lispector conhece Érico e Mafalda Veríssimo, dos quais torna-se grande amiga.


 Veríssimo e família retornam ao Brasil em 56. Entre os escritores, inicia-se uma vasta correspondência. No primeiro semestre de 59, o casal Gurgel Valente decide-se pela separação. Clarice volta a morar no Rio de Janeiro, com os filhos. Sobre o "conciliar" casamento/literatura, afirmava que escrevia de qualquer maneira, mas o fato de cumprir o seu papel como mulher de diplomata sempre a enjoou muito. Cumpria a obrigação. Nada além. Na volta ao país, mais um período de dificuldades afetivas e financeiras. Ela prefere a solidão ao círculo que tinha relação com o ex-marido.
O dinheiro que recebia como pensão não era suficiente, nem os recursos arrecadados com direitos autorais. Clarice retorna ao jornalismo. Escreve contos para revista Senhor, torna-se colunista do Correio da Manhã, em 59, e, no ano seguinte, começa a assinar a coluna Só para Mulheres, como "ghost writer" da atriz Ilka Soares no Diário da Noite. A atividade jornalística seria exercida até 1975. No final dos anos 60, Clarice faz entrevistas para a revista Manchete. Entre 67 e 73 mantém uma crônica semanal no Jornal do Brasil, e, entre 75 e 77, realiza entrevistas para a Fatos & Fotos.
"Nasci para escrever. Cada livro meu é uma estréia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que chamo de viver e escrever."
Imagem Clarice
"Em toda obra dessa grande escritora alguma coisa íntima está sempre queimando: suas luzes nos chegam variadas e exatas, mas são luzes de um incêndio que está sendo continuamente elaborado por trás de sua contenção. Esse fogo é o segredo íntimo e derradeiro de Clarice. É o seu segredo de mulher e de escritora."
Lúcio Cardoso.
capa Maca no Escuro/Ed. Circulo Livro
A década de 60 principia com a publicação do livro de contos Laços de Família. Seguiriam-se as publicações de A Maçã no Escuro, em 61, livro que recebeu o Prêmio Carmen Dolores Barbosa, A Legião Estrangeira, em 62, e A Paixão Segundo G.H., em 64.
"Eu...é curioso, porque eu estava na pior das situações tanto sentimental como de família, tudo complicado, e escrevi A Paixão..., que não tem nada a ver com isso."

Capa Paixao Segundo GH - 7a. Edicao
Uma escultora de classe alta, que mora num apartamento de cobertura num edifício do Rio, resolve arrumar o quarto de empregada, cômodo que supõe, seja o mais sujo da casa, o que não é verdade. O quarto é claro e límpido. Entre várias experiências desmistificatórias, a crucial: abre a porta do guarda-roupa e se vê diante de uma barata.
"É, fugiu do controle quando...eu de repente percebi que a mulher de G.H. ia ter que comer o interior da barata. Eu estremeci. De susto!"
Embora afirme que o livro não tem nada de experiência pessoal, admite que a obra fugira do seu controle...
"Esse esforço que farei agora por deixar subir à tona um sentido, qualquer que seja, esse esforço seria facilitado se eu fingisse escrever para alguém. Mas receio começar a compor para poder ser entendida pelo alguém imaginário, receio começar a "fazer" um sentido, com a mesma mansa loucura que até ontem era o meu modo sadio de caber no sistema. Terei de ter a coragem de usar um coração desprotegido e de ir falando para o nada e para o ninguém? - assim como uma criança pensa para o nada - e correr o risco de ser esmagada pelo acaso."
Paixão Segundo G.H.
"É um romance com uma personagem de nome desconhecido, indiciado apenas pelas primeiras letras, e que, como freqüentemente acontece nos textos de Clarice, representa a questão do nomear e do percurso que se experimenta nessa procura do nome ou da própria identidade. Esse percurso doloroso e prazeroso, espécie de via sacra que se chama paixão, estende-se até um ponto máximo, na união temporária entre o eu e o outro. Apenas G.H., que conta a alguém o que lhe aconteceu no dia anterior, criando um interlocutor imaginário como recurso que lhe dê coragem para fazer o relato."
Nádia Gotlib

"É preciso coragem. Uma coragem danada. Muita coragem é o que eu preciso. Sinto-me tão desamparada, preciso tanto de proteção...porque parece que sou portadora de uma coisa muito pesada. Sei lá porque escrevo! Que fatalidade é esta?"
Entre 65 e 67, Clarice dedica-se à educação dos filhos e com a saúde de Pedro, que apresenta um quadro de esquizofrenia, exigindo cuidados especiais. Apesar de traduzida para diversos idiomas e da republicação de diversos livros, a situação econômica de Clarice é muito difícil. Em setembro de 67, acontece o acidente que deixa marcas no corpo e na alma da escritora - um incêndio no quarto que ela tenta apagar com as mãos. Fica gravemente ferida, passa 3 dias entre a vida e a morte. Três dias definidos por ela como "estar no inferno."
"Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas, continuarei a escrever."
"A galinha olha o horizonte como se da linha do horizonte é que tivesse vindo um ovo. Fora de ser um meio de transporte para o ovo, a galinha é tonta, desocupada e míope. Como poderia a galinha se entender, se ela é a contradição de um ovo?...E me faço rir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio e não um fim tem me dado a mais maliciosa das liberdades. Não sou boba e aproveito, inclusive. Faço um mal aos outros que... francamente!"
O Ovo e a Galinha
Em 69, publica o romance Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Em 71, a coletânea de contos Felicidade Clandestina, volume que inclui O Ovo e a Galinha, escrito sob o impacto da morte do bandido Mineirinho, assassinado pela polícia com treze tiros, no Rio de Janeiro.
fac símile Agua Viva
Os últimos anos de vida são de intensa produção: A Imitação da Rosa (contos) e Água Viva (ficção), em 1973; A Via Crucis do Corpo (contos) e Onde Estivestes de Noite, também contos, em 74. Visão do Esplendor (crônicas), em 75. Nesse ano, é convidada a participar, em Bogotá, do Congresso Mundial de Bruxaria. Sua participação limita-se à leitura do conto O Ovo e a Galinha. No ano seguinte, Clarice Lispector recebe o 1° prêmio do X Concurso Literário Nacional, pelo conjunto da obra.
"Ninguém me entendia. Agora me entendem. A que você atribui isso? Eu não sei... que eu saiba não fiz concessões."
"É a história de uma moça tão pobre que só comia cachorro- quente. Mas a história não é isso. A história é de uma inocência pisada, de uma miséria anônima. Eu morei no Nordeste... eu me criei no Nordeste e depois no Rio de Janeiro... tem uma feira dos nordestinos no campo de São Cristóvão, e uma vez eu fui lá. E peguei o ar meio perdido do nordestino no Rio de Janeiro. Daí começou a nascer a idéia. Depois eu fui a uma cartomante e imaginei as coisas boas que iam me acontecer. E imaginei, quando tomei o táxi de volta, que seria muito engraçado se um táxi me atropelasse e eu morresse, depois de ter ouvido todas essas coisas boas. Então daí foi nascendo também a trama da história."
Em 77, concede entrevista à TV Cultura, com o compromisso de só ser transmitida após a sua morte. Ela antecipa a publicação de um novo livro, que viria a se chamar A Hora da Estrela, adaptado para o cinema nos anos 80 por Suzana Amaral.

Capa Hora da Estrela

"Me chamam de hermética. Como é que se pode ser popular, sendo hermética? Eu me compreendo. De modo que eu não sou hermética para mim"
Capa Um Sopro de Vida
Clarice morre, no Rio, no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes do seu 57° aniversário. Queria ser enterrada no Cemitério São João Batista, mas era judia. O enterro aconteceu no Cemitério Israelita do Caju.
Postumamente, foram publicados Um Sopro de Vida, Para Não Esquecer e A Bela e a Fera.
"Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..."
"Estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no que vivi - na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro".
Paixão Segundo G.H.
"Uma personalidade lisérgica. Para ela se abriam as portas da percepção, de modo a transformar-se o mundo num espetáculo de vertiginosa complexidade, profundidade e vigor. Clarice via demais, e o sofrimento lhe brotava da crispação das suas retinas expostas às agulhas de luz que saltam do coração selvagem da vida... Vidente e visionária, Clarice era fustigada, crucificada pelo excesso de estímulos, conscientes e inconscientes, que tinha de domar."
Hélio Pelegrino.
"Mesmo para os descrentes há a pergunta duvidosa: e depois da morte? Mesmo para os descrentes há o instante de desespero: que Deus me ajude... Venha, Deus, venha. Mesmo que eu não mereça, venha. Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que eu não sei usar amor: às vezes parecem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e continuo inquieta e infeliz, é porque preciso que Deus venha. Venha antes que seja tarde demais."
Imagem Clarice - 1977
"Eu acho que, quando não escrevo, estou morta."
TEXTO EXTRAÍDO, NA ÍNTEGRA, DO PROGRAMA "ÍNDICE CULTURA - Editoria Especial"
Produzido pela CULTURA FM
Ficha Técnica:
Roteiro, produção e apresentação: Patrícia Coelho
Apoio de Produção: Thays Barca
Coordenação: Regina Porto
No programa,o áudio da entrevista concedida a Júlio Lerner, TV Cultura, 01.02.77
Trechos de A PAIXAO SEGUNDO G.H., na voz de Regina Porto.
Citações na leitura de Fernando Uzeda.
Imagens extraídas de "Clarice, uma vida que se conta" de Nádia Battella Gotlib (segunda edição) Editora Ática 1995

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Ensinar e Aprender



1. Ler o texto abaixo ("Lição de Filho", de Clarice Lispector).

Recebi uma lição de um de meus filhos, antes dele fazer 14 anos. Haviam me telefonado avisando que uma moça que eu conheci ia tocar na televisão, transmitido pelo Ministério da Educação. Liguei a televisão mas em grande dúvida.
Eu conhecera essa moça pessoalmente e ela era excessivamente suave, com voz de criança, e de um feminino-infantil. E eu me perguntava: terá ela força no piano? Eu a conhecera num momento muito importante: quando ela ia escolher a "camisola do dia" para o casamento. As perguntas que me fazia eram de uma franqueza ingênua que me surpreendia. Tocaria ela piano?
Começou. E, Deus, ela possuía a força. Seu rosto era um outro, irreconhecível. Nos momentos de violência apertava violentamente os lábios. Nos instantes de doçura entreabria a boca, dando-se inteira. E suava, da testa escorria para o rosto o suor. De surpresa de descobrir uma alma insuspeita, fiquei com os olhos cheios de água, na verdade eu chorava. Percebi que meu filho, quase uma criança, notara, expliquei: estou emocionada, vou tomar um calmante. E ele:
--Você não sabe diferenciar emoção de nervosismo? Você está tendo uma emoção.
Entendi, aceitei, e disse-lhe:
--Não vou tomar nenhum calmante.
E vivi o que era para ser vivido.
in Jornal do Brasil, 1968
a) Comente qual foi a lição que Clarice Lispector recebeu do filho.
b) Você vivenciou alguma situação semelhante? Relate aos colegas.


2. A partir de 1945, o romance e o conto apresentaram novas perspectivas para a moderna literatura brasileira. Faça um estudo dos escritores que se destacaram no terceiro momento do modernismo.


3. Com orientação do professor, identifique no trecho abaixo as figuras de linguagem - metáforas e onomatopéias.
A máquina do papai batia tac-tac... tac-tac-tac. O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzzzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? roupa-roupa-roupa. Não, não. Entre o relógio, a máquina e o silêncio havia uma orelha à escuta, grande, cor-de-rosa e morta [...]
(LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro, A Noite, 1944. p.11).


4. A Legião Estrangeira, coletânea de contos e crônicas publicada em1964, é uma das obras marcantes de Clarice Lispector.
a) Leia o conto Uma amizade sincera.
b) Identifique o primeiro fato que reanimou a amizade dos dois amigos.
c) A situação chegou a se modificar? Por quê?
d) Como você entendeu essa observação do narrador:
"Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados".
(in A Legião Estrangeira, Rio de Janeiro: Autor, 1964, p.95-98).


5."Quem sou eu?" é um dos temas abordados no romance A hora da estrela, de Clarice Lispector. A partir desse tema, elabore uma redação. Em grupos, troque o texto com o colega e faça a leitura da redação dele, para elaborar um comentário.


6. Assistir ao filme A Hora da Estrela - (Direção: Suzana Amaral). A partir da frase abaixo, comente: Por que é irônica a relação entre o título e a história de Macabéa? "Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante da glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes".(Rodrigo-narrador)

 
7. Clarice Lispector também foi entrevistadora de pessoas famosas, como Chico Buarque e Jorge Amado. Suas entrevistas estão publicadas no livro De corpo inteiro.
Imagine-se entrevistando Clarice Lispector. Que perguntas você faria a ela? Como você imagina as respostas? Elabore uma síntese.
   

Obras da autora (Prosa)

Perto do Coração Selvagem (1944); O lustre (1946); A cidade sitiada (1949); Alguns contos (1952); Laços de família (1960); A maçã no escuro (1961); A legião estrangeira (1964); A paixão segundo G.H. (1964); O mistério do coelho pensante (1967); Uma aprendizagem ou livro dos prazeres (1969); A mulher que matou os peixes (1969); Felicidade clandestina (1971); A imitação da rosa (1973); Água viva (1973); A vida íntima de Laura (1973); A via-crucis do corpo (1974); Onde estivestes de noite? (1974); De corpo inteiro (1975); Visão do esplendor (1975); A hora da estrela (1977).
 

Obras editadas postumamente

Para não esquecer (1978); Quase de verdade (1978); Um sopro de vida (1978); A bela e a fera (1979); A descoberta do mundo (1984); Como nasceram as estrelas (1987).


Bibliografia

BORELLI, Olga. Clarice Lispector: Esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.


BOSI, Alfredo. Clarice Lispector. In: História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1989.


GOTLIB, Nádia B. Clarice - uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.


GUIDIN, Márcia Lígia. A hora da estrela de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1996. (Roteiro de Leitura).


LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1985. (Série Princípios).


NOVELLO, Nicolino.O ato criador de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Presença/MinC/Pró-Memória/INL, 1987.


PÉCAUT, Daniel.Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo: Ática, 1990.
 

WALDMAN, Berta.Clarice Lispector - A paixão segundo C. L. São Paulo: Escuta, 1992.


Visita para complementar o estudo:

Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB
Rua 1º de março, 66 - CEP 20010-000
Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Fones: (021) 216-0237 e 216-0626
Fax: (021) 233-6536
Visitas: 3ª a 6ª, das 10h às 20h; sáb., dom. e feriados, das 10h às 16h

Filmografia

A Hora da Estrela (BRA, 1986, 96min).
Direção: Suzana Amaral.
Elenco: Marcélia Cartaxo, José Dumont, Tamara Taxman.


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