Os herdeiros de Sócrates
--- Sobre alguns pensamentos escondidos
Luz de Jasmin
- Porto
Foto digital tratada - © Levi António Malho [2001]
"(...) O universo é apenas uma ideia passageira na mente de Deus --- um pensamento bonito e incómodo, sobretudo se se acabou de pagar a entrada para comprar uma casa. (...)
"(...)Podemos actualmente conhecer o universo? Meu Deus, já é tão difícil a gente orientar-se em Chinatown. A questão no entanto, é: há alguma coisa lá? E porquê? E porque é que fazem tanto barulho? (...)"
Woody Allen, "Para acabar de vez com a cultura"
Detesto
Filosofia! São horas e horas dum lado para o outro, ninguém se entende, não sabemos em
que é que ficamos e ainda por cima conta para a média, a gente nem foi ouvida nem
achada, "aquilo" devia era ser de "opção" e só para aqueles que
querem seguir "isso", o que quer que seja essa desgraça que nos caiu em cima a
partir do 10º ano...
A relação entre professores e alunos de Filosofia é como
aqueles casamentos de há muito tempo, "arranjados" à nascença para os mais
diversos fins mas que não passavam, pela certa, pela paixão dos "noivos"!
Condenados a coabitar num T1, mobilado à pressa (há quem lhe chame Sala de Aula), como
Egas Moniz, com corda ao pescoço, lá entram arrastando a alma os actores da
tragicomédia da Filosofia. Estudantes na expectativa, professores que têm de
"motivar" a ver se "aquilo" chega a algum sítio, uma enorme
sensação de mal-estar, quantas vezes, lá no íntimo, amaldiçoando-se mutuamente, uns
pensando que esta "cambada" está insuportável, outros remoendo sobre que mal
teriam feito para "gramar" este «gajo/gaja»!
E, de certo modo, todos têm boas e indiscutíveis razões,
pois a Filosofia continua a fazer de conta que é uma "disciplina" como as
outras e arranjou com isso um belo sarilho. Pergunta-se "o que é a Filosofia" e
caem em cima umas dúzias de respostas e "o cliente" que escolha como se fosse
um catálogo da "La Redoute", com a desvantagem para a Filosofia que o
"comprador" deve justificar criticamente a resposta, enquanto que na outra
hipótese basta passar cheque ou indicar o número do Cartão Visa.
Ora a Filosofia não é uma "disciplina", vive
entalada entre as Religiões e as Ciências, chegando ao cúmulo de andar sempre a pedir
desculpa por estar a incomodar. E é que incomoda mesmo, começando desde logo, em
brilhante jogada estratégica, por incomodar-se a si própria, andando de chapéu na mão
ou de nariz empinado, conforme o pobre professor se sentir o mais desgraçado dos mortais
ou o mais incompreendido dos Profetas.
Oito e meia, nove e meia, as horas não passam, nunca mais
toca a campainha e ainda tenho de lhes dizer que o Imperativo Categórico de Kant é muito
importante ou que a "dúvida hiperbólica" de Descartes era o diabo se não
fosse a existência de Deus. Que vida a minha que bem precisava que o Deus de Descartes,
de Abraão e Jacob me tirasse daqui e me levasse para longe, me aliviasse das resmas de
fotocópias todas sublinhadas, dos esquemas de Hegel e da última circular do Ministério
cheia de carimbos e assinaturas, é preciso dar parecer urgente e eu que ainda tenho de ir
ao supermercado e buscar os miúdos ao infantário.
Ali à frente, a Turma, se estiver em bom dia lá vai
ouvindo o sermão. tirando um apontamento ou divagando pelos antípodas enquanto não
chega o Natal, ou a Páscoa ou seja lá o que fôr que acabe com isto. Se a Filosofia nas
escolas tivesse as potencialidades da TvCabo, garanto-vos que já a audiência tinha
mudado de canal...
A verdade é que o filosofar e a filosofia estão
desajustados dos bio-ritmos efémeros dos nossos dias, da vertigem MTV,
"placards", promoções, "sites", CNN's que martelam os miolos dum
pobre mortal até ao enjoo. Sepultados no bairro-de-lata da informação, comemos imagens
e acabamos por ficar como "elas", bonitinhos mas "planos"! Isto é, se
olhar "para trás" ou "para dentro" não está nada, falta-nos fundo,
terra, densidade, mistério.
A Filosofia precisa que os seus ouvintes vão antes a uma
cura de águas, que fujam da CRIL dos IP'S ou das VCI'S, que desliguem o motor e que
estejam quietos e calados para ver se ainda distinguem o dia da noite, se escutam o
respirar do mundo e se alguma coisa ainda os espanta!
Professores e alunos de Filosofia estão metidos no
caldeirão da História e os seus destinos cruzam-se, a maioria das vezes, sem sequer se
tocarem a não ser, aqui e além e por razões que nada têm a ver com
"programas", pedagogias e estratégias de aprendizagem.
Ao "querer ser" uma disciplina a Filosofia só
terá hipótese de sobreviver se "lá dentro" não se comportar como tal. Assuma
que não tem "objecto" nem "método", a não ser "à força"
e aceite antes que é espaço duma vocação para Perguntar só porque "não
sabemos".
Perguntem até onde vão as Estrelas, de que falam as
baleias, por que não cai a Lua, por que temos medo do escuro, porque nos comovemos quando
uma velha árvore é sacrificada ao asfalto. E deixem que dessas perguntas nasçam outras,
e mais outras e depois outras ainda!
Acreditem que, se não formos frenéticos, quero já, quero
já, temos com que nos divertir para o resto da Vida.
Porto, Novembro de 2000
[ Nota: este pequeno texto foi pensado para publicar numa colectânea organizada por professores do "Grupo de Filosofia" do Colégio de S. Gonçalo - Amarante. Mas tinha em mente estudantes que chegam à Filosofia no 10ª ano e professores deste "estranho território". O que aqui digo, penso-o para todos, estudantes e docentes, qualquer que seja o patamar em que a Filosofia é ensinada/aprendida. Só que, naturalmente, os desajustamentos podem tornar-se mais intensos em situações em que os estudantes "têm de frequentar Filosofia", quer gostem, quer não gostem... Presume-se que, em percentagem significativa, quem vem ao encontro da Filosofia numa Universidade, escolheu o curso como 1ª opção.]