Um Caminho

Leandro Mallmann



O Caminho de Santiago inicia tradicionalmente na fronteira franco-espanhola, em meio aos verdejantes Pirineus do país Basco. Um pequeno povoado francês, St. Jean Pied du Port, é a porta de entrada mais utilizada pelos peregrinos. Santiago de Compostela dista 840 quilômetros dali. O sonho dura em média trinta dias de caminhada.


O cheiro dos morangos inundava a rua. Aquela vila, encravada nos Pirineus, lembrava um conto de fadas. Verduras, frutas, aromas, doces e animais colocavam-se à venda. Um doce murmúrio francês embalava meus ouvidos. Sorria e procurava pelo albergue.

Quando cruzei à frente da farmácia pela terceira vez, assumi meu desacerto. Resolvi perguntar. O inglês foi de pouca valia. O que resolveu o problema foi um portunhol cambaleado e sofrido. Homens solícitos de boinas negras, vozes pesadas e gestos firmes lembravam a fronteira gaúcha. Algumas esquinas quebradas, e outras tantas caminhadas desnudaram uma pequena estalagem na saída da cidade. A noite já se iniciava quando entrei no refúgio.

Beliches confortáveis, banho quente e cozinha. Um único e aconchegante ambiente. Logo à porta, dois franceses jantavam. Arrumei minha cama e descobri que um deles destrinchava um perfeito castelhano. Fui convidado à mesa e o vinho embalou as risadas. Lá fora, as montanhas espreitavam.

Acordamos às cinco horas da manhã. O céu era negro e chovia. "Nada mau para um começo." - brincaram os franceses que já caminhavam há um mês. Os primeiros momentos embrulharam a consciência. A mochila pesava mas a vontade mantinha os passos em sintonia. Um turbilhão de pensamentos acompanhava aqueles bosques. "Será que estou sonhando?" O crepúsculo foi definindo a imagem e amortecendo as pernas. A chuva cessara mas o céu permanecia sombrio. Na metade da manhã, um pequeno descanso. O lanche foi rápido: sanduíche de "jamón." Estava diluído mas precisava continuar. Cruzamos a fronteira e a Espanha me pareceu muito próxima. Respirei fundo.

"Daqui a vinte minutos alcançaremos o cume." - disse-me o gaulês que havia feito o caminho no ano anterior. Depois a descida, o monumento a Roldão(braço direito de Carlos Magno) e logo após, Roncesvalles. Já eram duas horas da tarde, e o almoço estava marcado para a chegada no mosteiro.

Fiquei um pouco para trás mas logo cheguei ao topo. Bastou um segundo para que a chuva, aliada ao vento cortante, mostrasse sua força e requinte: soprar na direção contrária. O deleite da descida ganhou ares de tormento. Corri às ruínas de Roldão atrás de um abrigo. Verifiquei os mantimentos e vi que ainda estavam secos. A capa de astronauta poupara dissabores. Tínhamos cinco graus de temperatura e mil metros de altitude. A primavera espanhola mostrava suas garras.

Meus amigos buscaram outro parador. Fiquei ali, esperando que o céu oferecesse um descanso. Sentia-me bem: molhado e com frio.

Meia hora depois, um mosteiro medieval apresentou-se aos olhos. Pedras seculares, portas rangentes, corredores silenciosos. Um padre taciturno conduziu-me a uma espécie de escritório. Carimbou o passaporte de peregrino (documento onde os caminhantes comprovam que estiveram nos lugares declarados), anotou meus dados e perguntou sobre o Brasil. Creio que o vi sorrir, pelo menos uma vez. Cheguei ao albergue depois de vários lances de escada. Meus companheiros avisaram: "Água fria."

Não falo do banho, digo apenas que foi rápido. As roupas foram lavadas mas não havia como secá-las. Duas horas depois, uma refeição improvisada já contava com a presença de uma holandesa, dois alemães, um italiano e alguns espanhóis. Uma divertida e barulhenta Torre de Babel. A conversa caminhava, os pés doíam, as bolhas principiavam. Dormi. A cama acomodou os suspiros e dos sonhos não me lembro.

Acordei com a noite posta e murmúrios de ansiedade. Acompanhei o cortejo e tomei meu lugar. O altar nos esperava e junto a ele, a famosa benção aos peregrinos de Roncesvalles.

A missa trouxe de volta uma infância distante. Voltava à liturgia cristã com olhos compreensivos. As paredes milenares falavam por si. O estômago roncava.

O restaurante ficava nas cercanias do mosteiro. Sopa de macarrão, ar climatizado, frango com legumes, bom atendimento, vinho da casa e "flan." Um banquete. As duras lembranças do dia transformaram-se em orgulho. Enfrentara a primeira prova. O sono foi justo e profundo. Restavam muitas milhas até Compostela.



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