Farisaísmo
Era eu ainda adolescente, quando me caiu à mão um livro incitante e optimista, cujo autor se pronunciava francamente a favor da hipocrisia. Segundo a sua opinião, o indivíduo, à força de simular virtude, acabava sendo mesmo virtuoso. Por isso, o hipócrita parecia-lhe um tipo estimável e simpático, longe de merecer a repulsa que a sua figura de ordinário inspira.
Tal era a consistência do alicerce em que se afirmava o enunciado daquele risonho escritor.
Eis, pois, que já lá se foram vários lustros e eu não pude nunca compreender como se conseguem evoluir da hipocrisia mais astuta à virtude verdadeira. A transição é sobremaneira difícil, senão de todo impossível. Porque no simulador desta espécie uma preocupação obcecante é, sem dúvida, aquela de se apresentar com as qualidades que dignificam aos outros e de que ele está baldo completamente. É claro que se possuísse, realmente, os sentimentos que afecta, não precisava viver de aparências. Numa obra de pensador portenho lembro-me de ter lido que «o hábito de parecer destrói no homem a capacidade de ser». Na realidade o hipócrita, por se ter inveterado no triste vezo de fingir, acabou incapaz de ser aquilo que parece. Ser homem de bem, pouco lhe importa: o que vale é passar como tal aos olhos de quem lhe não descubra a velhacaria e o disfarce. A insinceridade, mal congénito, ela a tem incrustada na alma; a maldade, no coração. Porém nada como saber ocultá-las com requintes de finura, de modo que todos o tenham em boa conta. Aliás, pecar secretamente não é pecar. «Et ce n'est pas pécher en silence» — tal é a lição que ele aprendeu de mestre Tartufo, quiçá mesmo sem ter lido a peça de Moliére.
O hipócrita curva-se mais aos clamores da opinião pública do que aos ditames da consciência. Não lhe dói a reprovação interior aos actos que pratica; a questão é não desmerecer no conceito mundano, ser alvo sempre de consideração e dos aplausos do grupo que o cerca. Ninguém o excede em apego às exterioridades e aos costumes tradicionais; por essa razão, principalmente em matéria religiosa, não há quem seja mais obediente ao formalismo do culto, a tudo aquilo que consiste em gestos e atitudes corporais. O hipócrita se exibe e se sobressai pelo seu fictício ar de contrição e afectada humildade. É quem melhor sabe adornar-se de pseudas virtudes, chegando até a ilaquear os menos perspicazes com o aspecto do semblante artificialmente austero. No tempo de Jesus-Cristo a hipocrisia mais execrável era aquela que revoluteava no íntimo dos Fariseus. Daí a identidade de sentido dos dois termos: farisaísmo e hipocrisia. «Tartufo», a personagem criada por Moliére, é a personificação dessa mazela moral. Aos olhos do povo desatento, os Fariseus passavam por santas criaturas, exercendo sobre ele uma influência extraordinária; mas Jesus, penetrando-lhes até ao cerne da alma, onde a iniquidade e a corrupção se aninhavam em recôndito sombrio, desmascarava-os de contínuo com arrojada e solene veemência.
Perguntará o leitor se cá pelos arraiais espíritas não temos os remanescentes do farisaísmo judaico. Certamente que eles por aqui também intrujam, e não são poucos, entre nós, esses desgarrados discípulos de Hillet. Mas o que se não deve é confundi-los com os espíritas verdadeiros, embora não seja fácil essa confusão, porquanto na sociedade dos espíritas verdadeiros é impossível medrar a hipocrisia ou a falsa virtude. O que os distingue é justamente a sinceridade e a franqueza. Aquele que estudou o Espiritismo, que compreendeu e sentiu a sua doutrina, sabe perfeitamente que se pode iludir aos homens, mas não haverá jamais quem consiga enganar a Deus!
Não calham, portanto, bem urdidos simulacros e habilidosas artimanhas. Até porque ninguém colherá senão os frutos da sua semeadura, levando consigo o seu próprio fardo, como lá diz o apóstolo. A alegria e a ventura acompanharão aos que se conduziram dignamente na pauta dos sentimentos elevados; os dissabores e os remorsos serão os verdugos dos que andaram na falsa fé, rumando aos impulsos da maldade que acumularam no coração.
In: Farisaísmo — Estudos Psíquicos. Alfredo Miguel — Dezembro de 1950