O último livro da Bíblia, no Novo Testamento, é o "Apocalipse". Como revelação profética do "fim do mundo", gerou, por toda a história apologética ou literária do Cristianismo muitas exegeses e comentários, todos dependentes do conteúdo confuso original de seu autor, São João Evangelista. A muitos dos textos dessas exegeses e comentários se acrescentaram, durante a Idade Média, ilustrações capazes de fazer o leitor visualizar as terríveis profecias do livro do Evangelista. Um dos comentadores medievais do Apocalipse foi um monge espanhol do séc. VIII, natural da cidade de Liebana, na província de Santander, perto de León, São Beato. Seu trabalho, Insigne comentario al Apocalypsis, foi copiado, no século XII, segundo Alexandre Herculano, por um certo Egas que produziu um códice caracterizado, principalmente, "pelas bárbaras iluminuras, onde se enconram muitos espécimes autênticos de trajos, alfaias, arquitetura do séc. XII, raros em Portugal.". Ainda segundo Herculano, nestas observações que escreveu transversalmente na parte interna da capa do códice, "Obtive-o das freiras de Lorvão [mosteiro de Lorvão] em 1853, para o fazer depositar no arquivo da Torre do Tombo, a que fica pertencendo. Por uma das iluminuras, aqui reproduzida, desse códice, que ainda se encontra no renovado Arquivo Nacional da Torre do Tombo, até há pouco dirigido pelo historiador José Mattoso, se vê que o hábito de executar condenados pela decapitação com espada pesada e sem ponta era da tradição medieval européia, em geral, e portuguesa. Como jesuíta mergulhado decididamente nas raízes medievais de sua milícia, Anchieta sabia perfeitamente como e em que circunstâncias o ato devia ser sancionado pela Igreja. A cruz da presente ilustração indica com eloquência esta sanção como prática do cristianismo europeu até os tempos da Inquisição, no século XVI. A crueldade do ato é aqui mostrada pela fisionomia do carrasco em contraste com a face existencialmente indiferente da Igreja. Um representante desta, todavia, jamais trocava de lugar com aquele, sob pena de transgredir um dos mais básicos preceitos cristãos, que era o da piedade, da comiseração, mesmo que hipócrita, como acontecia naqueles tempos. Anchieta, no entanto, assumiu a crueldade inerente à função do verdugo do Apocalipse de Lorvão ao ensinar-lhe como usar a pesada espada na execução de Jacques Le Balleur, chamando com isso contra si tanto o questionamento de um jovem irmão jesuíta, conforme o relato de seu contemporâneo e biógrafo Pero Rodrigues, quanto a estranheza corajosa de Frei Vicente do Salvador anos depois, quando a causa da canonização do padre canarino estava na ordem do dia em razão da nova política da Companhia de Jesus na América do Sul.
|