Será uma violência falar nestas personagens?, será que me apropriei de uma determinada cor, de uma determinada música, que não me pertencem?, ou será que essa cor e essa música apenas existem no meu cérebro e fui eu que as liguei a essas personagens? Talvez estas personagens não se reconheçam no meu olhar. Quando pensamos nas pessoas é o nosso olhar sobre elas que permanece. O que é certamente irónico é ter descoberto que as personagens que pensaram ter tido sobre mim alguma espécie de poder, como era o seu objectivo, não me tenham deixado uma ideia que eu pudesse seguir, e que as personagens que não tiveram qualquer influência no meu trajecto tenham sido precisamente aquelas que mais poder tiveram sobre mim. Falo destas personagens com se fossem pessoas que me estivessem próximas, não me admirava nada que até começasse a conversar com estas personagens. Onde é que isso me pode levar é que não sei. Ando a transportar-me para realidades que nada têm a ver com a nossa realidade. A minha função, como pesquisadora de personagens, devia ser desmontar a nossa realidade e não substitui-la por outra. Mas não consigo ter um pensamento histórico, nunca consegui ver o tempo em sequência de factos e pessoas, relacionados entre si e numa determinada época. Sempre vi as pessoas e os acontecimentos como repetições da mesma cena em cenários diferentes, até ao infinito. Não me distancio dessas cenas nem dessas personagens que continuam a representar num palco, cada um o seu papel. O que vejo é a expressão da espécie humana, quase estática e imutável. E algumas personagens fascinantes, a que chamo criadores, por vezes mudam alguma coisa de forma mágica. O que podem sentir estas personagens nesse continuum com tão poucas variações de tema a não ser um profundo tédio ou quem sabe um desespero. E quem sabe não é precisamente a fuga desse tédio e desse desespero que os leva à criação? E porque é que estas personagens não tocam as pessoas mais profundamente, não lhes despertam a sensibilidade, não as desafiam a pensar de forma criativa. Porque é que as pessoas mantêm as mesmas formas de olhar e de agir também é coisa que não compreendo. Se não fosse essa capacidade de construir uma realidade onde pudesse respirar, essa capacidade de criar personagens, o Poeta não teria qualquer hipótese de sobreviver. O pensamento salvou o Poeta do desespero, tenho a certeza. Quem podia manter por muito tempo uma certa lucidez, ou o que quer que se lhe assemelhe, e enfrentar estas ruas e estes cafés todos os dias é coisa que não entendo. E quanto mais elegantes as ruas, os palacetes, os cafés, mais insuportável. Esta decadência, esta paragem no tempo que o acabou por atrair, não ajuda a viver mas a morrer. Só o pensamento e essa outra realidade e essas personagens o podiam ajudar a viver. Pelo menos é o que eu penso. Ter de inventar uma nova realidade e outras personagens e outros mestres para suportar esta cidade e esta decadência, é o que eu penso. Passar a contar apenas consigo próprio. E saber que mesmo isso não é certo. Como pode um homem de sensibilidade sobreviver neste deserto se não tiver a capacidade de criar uma outra realidade e personagens. Alguém, talvez mais do que uma pessoa, disse que não o podemos situar nesta cidade nem neste país, que há qualquer coisa de universal em homens assim. Mesmo a forma como se exprime, por exemplo, não tem nada a ver com os seus contemporâneos e se virmos bem e tentarmos ser honestos não tem nada a ver com os actuais. Se formos mais longe na procura dessa honestidade vemos que ninguém é contemporâneo deste homem. Ele não tem verdadeiramente contemporâneos neste país. Pessoas assim não moram numa rua, numa cidade, num país, mas num espaço sem tempo nem limites de qualquer espécie. Por pouco o Filósofo não conheceu o Poeta. Ambos falam de viagens e de malas por fazer e de desertos e da decadência e da inutilidade da existência. Ambos falam do receio de voltar a casa. Esta minha obsessão por personagens que me são inacessíveis, que me serão sempre inacessíveis. Mas todas as personagens nos são inacessíveis, habitamos um espaço (ou convencemo-nos disso) e estamos sempre sós. Se nem mesmo as personagens que coexistem connosco nos são acessíveis (e talvez muito menos acessíveis).
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