Milhões de pessoas em movimento. No mapa-painel electrónico
visualizava melhor todo esse processo. Os dados eram actualizados automaticamente.
O início do século iria ficar conhecido como a Época
dos Refugiados. Diferentes etnias numa amálgama confusa. Desenraízamento
com tudo o que isso implica. A morte de culturas. O seu fim definitivo.
Fizera um estudo exaustivo das principais culturas desaparecidas. Nunca
assistira directamente a nenhum desembarque de refugiados nem visitara
nenhum campo e acreditava que essa falha podia comprometer a credibilidade
do trabalho. Sempre dera prioridade ao lado científico da coisa
e às implicações sociais e económicas.
Conseguia projectar diversos quadros num futuro próximo. Mas
não se aproximara das situações. Os dados chegavam-lhe
por computador, pedidos selectivamente. De vez em quando, ligeiras alterações,
à medida que iam sendo actualizados.
A amiga descobrira logo desde o início este seu entusiasmo pelo
estudo dos movimentos migratórios. Fora dela a ideia de adaptar
uma das divisões da casa e construir um pequeno gabinete. Primeiro
tinha sido a vez dos Receptores de Informação mais sofisticados,
depois o aperfeiçoamento de programas para o tratamento dos dados.
Finalmente o mapa-painel com os seus pontos e trajectos luminosos.
Do seu posto de observação, designação que
dera ao Gabinete de Estudos dos Movimentos Migratórios, vira tudo
isso acontecer. Do seu posto de observação isolado. Primeiro
tinha começado por estudar os movimentos migratórios do interior
do país para os centros urbanos. Tinham sido tentadas algumas medidas
e estratégias de impedimento dessa sangria, é certo. Mas
o processo era já irreversível. A descaracterização
do país. O país e a sua cultura própria, sempre vistos
mais na perspectiva do espectáculo do que na sua essência.
Da arquitectura ao estilo de vida, dos valores à linguagem. Já
nada era identificável como genuíno, como característico
de uma comunidade. A despersonalização em toda a linha. A
perda de uma memória colectiva. Um processo irreversível.
Mas o pior eram os movimentos migratórios originados por focos de
violência e destruição. Iniciara este estudo como sequência
lógica do estudo inicial. Estes movimentos migratórios de
fuga, de uma destruição para outra forma de destruição,
tinham começado a exercer sobre si um enorme fascínio, deveria
dizer mesmo obsessão.
Receber um dia uma mensagem electrónica. E nessa mensagem alguém
dizer que se interessava imenso pelo estudo dos movimentos migratórios
actuais. Sobretudo as consequências dessa realidade, das alterações
radicais e violentas. Alguém atento aos seus textos na Internet
e que gostaria de trocar algumas ideias. No geral, uma mensagem muito simpática.
Assinada O colega.
Passar a trocar mensagens e ideias com uma certa frequência.
Encontrar finalmente um outro entusiasta da recuperação de
culturas em risco de destruição. Neste local isolado.
Hoje em dia o isolamento é muito relativo, pensou, o melhor
seria utilizar a palavra deserto. Neste local deserto, onde quase não
se vêem pessoas, encontrara uma personagem de ficção.
Porque este novo colega de investigações era mais uma personagem
do que propriamente uma simples pessoa, digamos uma pessoa próxima
da realidade. Conseguia imaginá-lo em todas as situações
possíveis mas nunca em situações simples, de todos
os dias. A verdade é que sentia uma forte admiração
por esta personagem. Na comunicação era o mais lacónico
possível. Reservado e sóbrio, não se encaixava em
nenhuma das características do homem actual.
Enviou-lhe um dia imagens do laboratório. Na mensagem ouviu-o
comentar o mapa-painel e os seus trajectos luminosos:
Parece a sinalização de um aeroporto de noite. Fascinante.
É completamente diferente dos gráficos no écran do
computador. Lembram os painéis gigantes que víamos nos filmes,
naqueles postos de observação militares do século
passado. A ideia da actualização contínua e imediatamente
visível é engenhosa. Não lhe dá a sensação
de qualquer coisa viva? Qualquer coisa que está a acontecer neste
preciso momento. Pessoas em movimento.
Respondera-lhe que à distância era diferente. E na resposta
ouviu a frase inquietante:
Eu nunca me consegui distanciar.
Esta observação ficara-lhe registada. O estudo à
distância de grupos, quaisquer que fossem, não teria já
implícita essa sua forte consciência da importância
desses mesmos grupos, mesmo na sua própria existência? Tão
forte e absoluta que o levara a dedicar a sua própria existência
ao seu estudo? No fundo, esses grupos não tinham muito mais importância
do que desejaria admitir, mesmo a si próprio, sobretudo a si próprio?
Não exerciam sobre si um fascínio muito maior? Não
se rejeita o que mais nos fascina, quando nos fascina de forma tão
absoluta?
Reparou então que ficara absorto no seu próprio raciocínio
e não acompanhara o colega que já mudara de tema. Ouviu a
voz calma como se fosse um conjunto de sons que começam a surgir
do silêncio:
Tudo passou a ser reciclável hoje em dia. As memórias
colectivas, as individuais deixaram de contar, contrariamente ao previsto,
o património, os valores, as imagens, até as pessoas.
Tentou regressar do raciocínio anterior que ainda o incomodava
e ouvir com atenção:
As transformações que o tratamento de imagem passou
a exigir, por exemplo. Tornou-se cada vez mais sofisticada neste século.
Os gabinetes de recuperação de imagem cada vez mais procurados.
É certo que foi uma conquista do século passado mas é
agora que vemos proliferar por aí os mutantes. E não só
no mundo do espectáculo. Na política, na ciência, na
informação.
A ideia de comprometer um trabalho por ser feito à distância
começara a preocupá-lo. O seu isolamento científico,
a sua protecção da realidade. Dedicar-se ao estudo das pessoas
e dos seus movimentos migratórios e nunca ter presenciado por assim
dizer nenhuma dessas deslocações.
Estava previsto para breve um desembarque de um grupo numa das cidades
já em situação crítica. Tinham recebido vários
grupos e esgotado todas as capacidades de acolhimento.
Cinco horas de voo se conseguisse lugar num avião da equipa
de reconhecimento e apoio às vítimas. Uma ligação
directa a um funcionário numa posição estratégica
e tudo se arranjava. A hesitação final no momento de efectuar
a ligação. A decisão fatal, pensou, enquanto
fixava o painel com os trajectos luminosos e coloridos, as luzes a piscar
em locais estratégicos.
A viagem não fora tão cansativa como tinha previsto. Tinha
tido por companhia as pessoas mais estranhas. Havia os especialistas em
evacuações de emergência, com os apoios necessários
para a sobrevivência do maior número possível de refugiados.
Utilizavam um discurso um pouco hermético com siglas e termos técnicos
à mistura e referências a casos anteriores. Conheciam os meandros
mais ocultos e sinuosos da política externa e identificavam os motivos
desta ou daquela medida. Previam com bastante precisão os movimentos
seguintes e planeavam as medidas estratégicas de prevenção.
Seriam completamente ultrapassados pelos acontecimentos, como mais uma
vez se iria verificar. Por falta de meios e de apoio no terreno. E pela
própria dimensão das situações de crise. Havia
os especialistas de saúde, seleccionados pela capacidade de intervenção
rápida quando expostos a níveis de stress elevados e prolongados.
E militares treinados para lidar com multidões em fuga nas situações
mais precárias, com o objectivo essencial de protecção,
escolha dos trajectos mais seguros e detecção de explosivos
nas vias a ser utilizadas. Finalmente alguns especialistas de informação,
com o seu linguajar irritante, de quem se exprime para um público,
de quem se preocupa com o lado espectacular dos acontecimentos. Verificou
que era o único especialista teórico, por assim dizer. Isso
começava a preocupá-lo. Como se iria adaptar à situação,
à aproximação da realidade, do facto ao vivo e
no local.
A cidade evidenciava todos os sinais possíveis da decadência
e da destruição sistemática provocada por uma guerra
civil. Tudo a saque. As casas desertas, algumas quase totalmente destruídas.
O silêncio. A poeira amarela.
Vagueou pelas ruas que lhe lembraram cenários abandonados de
filmes antigos. Num momento a cidade era uma coisa viva, no momento seguinte
uma coisa morta. E o pior era o esquecimento. Conhecera culturas
que alimentavam as memórias da destruição e do sofrimento
a que tinham sido submetidas. É certo, pensou, que mesmo essas culturas,
que alimentavam as memórias do seu papel de vítimas
de destruição, eram as mesmas que destruíam outras
culturas. Vítimas históricas e agressoras históricas.
De onde se podia depreender que é tudo uma hipocrisia pegada. Qualquer
cultura promove o seu papel de vítima e não o faz inocentemente.
Porque também tem vocação de agressor. Mas a memória
era fundamental, não para promover a supremacia de uma cultura sobre
outra, legitimar essa supremacia, mas para mostrar às pessoas essa
realidade de agressores e vítimas, essa lógica humana.
O homem evolui no sentido da sua própria protecção
e sobrevivência num mundo hostil. Agora tudo o ameaça. Processos
de destruição sistemática. E tudo à escala
mundial.
Percorreu a distância que o separava do grupo. A mochila pesava-lhe
nas costas. Aliás tudo lhe pesava nesse dia. As imagens, sobretudo
as imagens que registara. Pessoas aglomeradas em espaços sem quaisquer
condições. A subnutrição. As doenças.
Pessoas encurraladas, sem saída, sem hipótese de sobrevivência.
As imagens registadas são muito diferentes da realidade ao vivo.
Vive-se numa época em que se viram todas as imagens possíveis
desse horror na televisão ou em vídeo, mas nada se compara
à realidade. Vive-se numa época de habituação-banalização-acomodação.
A violência e o sofrimento que não se vê não
existe. Para se ver a violência e o sofrimento tem de existir o espectáculo.
A informação e o seu espectáculo. Montar o espectáculo.
Desmontar o espectáculo.
A Associação de Apoio à Vítima de Desmemorização.
Esta insistência na designação de vítima
causava-lhe calafrios. Era a institucionalização de uma atitude.
Só podia tornar-se a manutenção de um cenário
e, nesse cenário, de uma peça repetitiva. A representação
de um papel que se aprendeu e que se repete até à exaustão.
Metemo-nos num papel, quase sempre desconfortável, e quase obrigamos
os outros a representar também o seu papel, continuadamente.
Não lhes damos grandes alternativas, esperamos que eles representem
o papel que lhes atribuímos. O jogo dos papéis. A
vítima precisa de um agressor, o agressor de uma vítima.
O pior era quando uma vítima não pedia para ser vítima
porque nunca o fora, não era a sua natureza, e de repente via a
sua existência completamente destruída por um agressor que
sempre o fora, era a sua própria natureza. Não havia vítimas
suficientes para tantos agressores, concluiu. A história é
feita destes desequilíbrios doentios.
CENTRO DE ESTUDOS DE RECUPERAÇÃO DE MEMÓRIA, 2011,
OUTUBRO
Tinham-no sentado numa cadeira especial, pelo menos era o que lhe parecia.
Distinguiu algumas luzes em volta, depois imagens mais nítidas.
Um gabinete de portas envidraçadas. Nas paredes, painéis
com luzes coloridas a piscar. Estes painéis eram-lhe vagamente familiares.
Reparou tratar-se de uma espécie de mapas de cérebros humanos
observados de perfil, alguns a rodar sobre si próprios.
Um homem entrou no gabinete. Comentou qualquer coisa que lhe pareceu
ser uma pergunta. Não teve tempo de responder. O homem inclinou-se
sobre uma espécie de monitor colocado numa mesa oval e saiu. No
corredor, por detrás da porta envidraçada do gabinete, que
deixara entreaberta, viu-o falar apressadamente com outro homem. Deslocou
a cadeira e inclinou-se para a frente.
– Temos mais um caso. Com este são já vinte esta semana.
– É uma autêntica epidemia. Refugiados por todos os lados.
– E desta vez não temos quaisquer dados de identificação,
nada. Nem um único cartão electrónico ou mesmo o processo
clínico.
– Nesse caso devemos contactar a Associação de Apoio
à Vítima de Desmemorização, o que é
que achas?
– O caso foi-nos precisamente encaminhado pela Associação.
Parece que já não têm capacidade de resposta. Gostava
que o visses. Nunca nos passou nada assim pelas mãos.
– Estas pessoas apresentam todos os sinais de ter sido expostas a um
processo de violência mental, a alterações radicais
e definitivas, e aparecem-nos nas condições mais precárias.
Quando é que isto vai parar?
1997, Ano Internacional dos
Refugiados |